A palavra “universidade” remete ao ideal de pluralidade — um espaço de convivência entre diferentes visões de mundo, onde o debate crítico faz parte do processo formativo. O caso do estudante Wilker Leão, suspenso e atualmente sob risco de expulsão pela Universidade de Brasília (UnB), tem gerado questionamentos sobre os limites legais do poder disciplinar universitário, especialmente diante da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores quanto à licitude de gravações em sala de aula.
Wilker ingressou no curso de História em 2024 e, desde o início, passou a questionar abordagens apresentadas em disciplinas como História do Brasil e História da África. Registrou, por meio de vídeos, discussões com professores e colegas em sala de aula, nos quais contrapôs argumentos, abordou discordâncias e publicou trechos desses diálogos em redes sociais. Os vídeos, públicos, mostram, entre outras situações, professores afirmando: “Não tem direito de defesa aqui”, “Todo debate acadêmico é político” e “Essa dicotomia de bem e mal é o que a gente está tentando desconstruir aqui”.
Universidade aplica punição e edita regra considerada inconstitucional
As gravações geraram reações internas e externas. A UnB instaurou processo disciplinar, afastou o estudante por 180 dias e, em seguida, recomendou sua expulsão. O processo, segundo consta, foi fundamentado em um conjunto de fatores, incluindo a gravação e divulgação de aulas sem autorização, além de alegações de perturbação do ambiente acadêmico e reincidência de condutas consideradas irregulares. Contudo, à época dos registros feitos por Wilker, não havia regulamentação específica da universidade sobre gravações em sala de aula feitas por estudantes.
Somente em abril de 2025, após a repercussão do caso, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da UnB aprovou a Resolução nº 0062/2025, que passou a estabelecer regras sobre o tema. O texto prevê que a gravação de aulas só é permitida mediante comunicação prévia ao professor responsável, que pode se opor por justificativa fundamentada.
A norma, entretanto, não pode ser aplicada retroativamente para punir atos anteriores à sua publicação, em respeito ao princípio da legalidade e à segurança jurídica, expressos no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal.
Tribunais garantem legalidade da gravação feita por interlocutor
O entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é de que a gravação ambiental feita por um dos interlocutores é lícita, ainda que sem autorização do outro. O STJ estabeleceu essa tese no Recurso Especial 1.100.418/SP, e o STF reafirmou no Recurso Extraordinário 583.937/RJ (Tema 237 da Repercussão Geral). Ambos os tribunais indicam que esse tipo de gravação não configura interceptação clandestina, mas instrumento legítimo para produção de prova e exercício do direito de defesa.
A divulgação dos vídeos por Wilker em suas redes sociais ampliou o debate. Sua conta no Instagram ultrapassa 400 mil seguidores, e os vídeos que publica recebem milhares de visualizações, comentários e compartilhamentos. O engajamento nas redes tem sido apontado por juristas como um dos indícios de interesse público sobre o que ocorre no ambiente universitário. A própria jurisprudência reconhece que, quando há esse interesse, a liberdade de informação pode prevalecer sobre a proteção da imagem individual, desde que respeitados os critérios de necessidade, finalidade e proporcionalidade — o que, no caso, é reforçado pelo fato de Wilker filmar apenas a si próprio em sala de aula, sem expor os rostos de terceiros (com exceção de registros de atos públicos, quando foi agredido por outros estudantes).
O advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, reforça esse entendimento: “A resolução é totalmente inconstitucional. Os direitos autorais e de imagem são individuais, devem se submeter à liberdade de expressão quando há interesse coletivo na divulgação. É exatamente o caso. O aluno expõe que uma universidade pública age de modo opressor por ideologia de seus professores e gestores. Se há ilícito nesse caso, é o dos gestores públicos fazerem do ambiente público universitário a casa de suas ideologias”.
Professores constrangem o aluno em aula e reforçam clima de hostilidade
Em entrevista, Wilker afirma: “Nunca foi o meu objetivo expor pessoas. Eu deixo isso claro o tempo todo. Eu não tô aqui nem pra expor vocês. Eu tô pra expor o ambiente. O ambiente universitário de forma genérica. Eu gravo só o meu próprio rosto.”
Ele também relata episódios de constrangimento pessoal: “O professor de História da África me acusa o tempo todo de ser de extrema direita, de ser um sabotador de aulas, de não saber nada. Ele somente não utiliza a palavra burro, mas chamando de burro por meio de outras palavras: ‘Ele não sabe de nada’. Todos nós aqui podemos discutir, menos ele, porque não tem conhecimento. O tempo todo ele está falando, por meio dessas expressões, na frente de todos os outros alunos, me constrangendo.”
Sobre sua esposa, Wilker declara: “Eles consideraram que minha esposa é uma aluna lá, que na verdade é minha amiga e é uma das únicas que me apoiam, mas se colocando em risco. Então, descobriram quem ela era e quiseram dizer que ela era feia. O professor comenta: ‘Ah, aquela lá é a esposa dele’, aí um aluno comenta: ‘Ah, aquela horrorosa, é a esposa dele? Ah, mas tinha que ser, não sei o quê’. Todo mundo ria, assim, todo mundo chacota. Então, esse era o clima da sala de aula.”
Além das tensões em sala, Wilker registrou manifestações no campus comemorando sua suspensão. No dia 24 de março, durante um protesto organizado por grupos estudantis, ele filmou cartazes e discursos celebrando sua exclusão das aulas. Segundo ele, a reitora Rozana Reigota Naves estava presente no evento. Em seu canal no YouTube, há vídeo que mostra uma colega sua sendo retirada do local após ser identificada gravando a manifestação.
Reitoria insiste na punição e processo pode abrir precedente de perseguição
A reportagem procurou oficialmente a Universidade de Brasília para solicitar acesso ao documento que recomenda a expulsão do estudante Wilker Leão, bem como uma posição institucional da reitoria sobre os fatos narrados. O pedido foi encaminhado com base na Lei de Acesso à Informação, justamente para assegurar espaço ao contraditório e permitir que a universidade apresentasse sua versão dos acontecimentos. Até o momento da publicação, porém, não houve retorno da instituição. Poucos dias antes, no entanto, a reitora concedeu entrevista à revista Carta Capital.
Na entrevista à revista Carta Capital, publicada em 11 de junho, a reitora afirmou: “O ataque às universidades é um projeto da extrema-direita, e essas instituições incomodam pelo próprio histórico de resistência aos conservadorismos e autoritarismos.”
Wilker, que não conta com assessoria jurídica formal, sustenta por conta própria que a recomendação de expulsão viola o direito à ampla defesa. Também argumenta que não houve advertência formal anterior à suspensão e que foi alvo de medidas punitivas em razão de manifestações de pensamento e de gravações lícitas, com conteúdo de evidente interesse público.
O caso segue em tramitação interna. Seu desfecho poderá ter implicações mais amplas sobre os limites do poder disciplinar das universidades públicas e a compatibilidade entre suas normas internas e os direitos e garantias constitucionais.
A tentativa de punir um estudante, especialmente por registrar e divulgar conteúdo público relacionado a uma instituição financiada por recursos públicos, levanta questionamentos sobre a legalidade do processo e a finalidade real da sanção. A Resolução CEPE nº 0062/2025, além de posterior à conduta do aluno, estabelece restrições que colidem frontalmente com a jurisprudência dos tribunais superiores — o que torna sua constitucionalidade questionável.
Neste contexto, o processo contra Wilker pode ser compreendido não apenas como uma sanção disciplinar, mas como um possível caso de perseguição institucional motivada por dissidência ideológica. A depender do encaminhamento jurídico, o caso poderá se tornar um precedente importante sobre os limites da autoridade universitária frente aos direitos individuais do estudante — inclusive o de gravar, denunciar e discordar.
* Dimitrios Elias Grintzos é engenheiro civil, empresário, filósofo e diretor do Instituto de Formação de Líderes (IFL), em Brasília.