Eles se espalharam por todo o país, batendo nas portas das casas para arrecadar dinheiro em nome de uma causa que redefiniria a Índia.
Esses ativistas —grupo que incluía um jovem Narendra Modi— conseguiram juntar milhões de dólares, poupados ao longo de uma extensa luta para construir um grandioso templo hindu em Ayodhya, no norte indiano, em um terreno há séculos ocupado por uma mesquita no estado de Gujarat.
Cerca de 200 mil aldeias organizaram cerimônias para abençoar tijolos cada um dos que seriam enviados para a cidade sagrada, onde segundo a crença hindu nasceu o deus Ram.
Os líderes do movimento declararam que os tijolos não seriam usados apenas para construir o templo. Eles formariam as bases de uma nação hindu —o que a Índia deveria ter sido desde o seu nascimento, em vez de uma república secular, segundo os hindus conservadores.
Nesta segunda-feira (22), Modi, o primeiro-ministro do país, inaugurou o templo de Ram em Ayodhya. Trata-se do maior feito de um movimento nacional cujo objetivo é estabelecer uma supremacia hindu na nação, reunindo a maioria hindu do país dividida por todas as castas e tribos.
“Hoje, nosso Ram chegou. Após séculos de paciência e sacrifício, nosso senhor Ram chegou”, disse Modi durante a cerimônia. “É o início de uma nova era.”
Os nacionalistas hindus não foram os únicos a celebrar o momento. Muitos indianos que pouco se importam com a política cultuam Ram, e a empolgação com a inauguração do templo vinha aumentando há semanas, com bandeiras cor de açafrão sendo penduradas em milhões de ruas e mercados, e cartazes com a imagem de Ram anunciando o evento por toda parte.
Para os 200 milhões de muçulmanos do país, contudo, a inauguração reforçou um sentimento de desespero e isolamento. A destruição da mesquita que ficava na área, em 1992, por ativistas hindus desencadeou uma onda de violência sectária na Índia que deixou mais de 2.000 de mortos.
A forma como o local de culto foi derrubado ainda estabeleceu um precedente de impunidade que reverbera até hoje, com linchamentos de muçulmanos acusados de abater ou de transportar vacas (animal sagrado para muitos hindus), agressões a casais interreligiosos e demolições ilegais de residências de muçulmanos por autoridades se repetindo sem que os envolvidos sejam punidos.
A direita hindu aproveitou o movimento para se tornar a força política dominante da Índia. A abertura do templo, construído em um terreno de quase 300 mil m² a um custo de quase US$ 250 milhões (cerca de R$ 1,3 bilhão), marca o início não oficial da campanha de Modi para um terceiro mandato.
O fato de Modi ter sido a estrela da inauguração do templo em Ayodhya —que os nacionalistas hindus comparam ao Vaticano e à Meca— retrata a dissolução das fronteiras entre política e religião.
Os fundadores da Índia se esforçaram para manter a separação entre igreja e Estado, considerando essa divisão crucial para a coesão do país depois do banho de sangue provocado pela independência do Paquistão em 1947.
Mas Modi normalizou justamente o oposto. Após concluir os rituais da inauguração do templo ao lado de sacerdotes na segunda, o primeiro-ministro se prostrou diante de uma estátua de Ram que, esculpida em pedra preta e adornada com joias, mostra a divindade com um sorriso caloroso e olhos límpidos. A imagem que ele projetava dos degraus do templo era idêntica a de outros de seus grandes momentos: o retrato de um líder poderoso que, sozinho no quadro, avança a passos largos e faz uma reverência aos milhares de convidados selecionados a dedo —entre celebridades, empresários e videntes— sentados abaixo.
Para se preparar para essa cena, Modi embarcou em um ritual de purificação hindu de 11 dias. O primeiro-ministro foi visto visitando templos por todo o país, e quando seu gabinete divulgou fotos dele alimentando vacas, entusiasmados canais de TV as transmitiram como uma notícia urgente.
Manoj Kumar Jha, um parlamentar da oposição, diz que, embora o partido de Modi, o BJP, possa um dia ser derrubado, a transformação que ele promoveu na sociedade e no governo indianos levaria ao menos décadas para ser desfeita.
“Vencer eleições pode ser uma questão de aritmética. Mas a luta está no campo da psicologia: a ruptura psicológica, a ruptura social”, diz Jha. Segundo ele, assim como o Paquistão foi fundado como um Estado para um grupo religioso, no caso de muçulmanos, a Índia “agora está imitando o Paquistão, um pouco atrasada”.
“A mistura tóxica de religião e política é idealizada”, acrescenta o congressista. “Ninguém se preocupa em ver no que essa mistura tóxica deu.”
Em muitos sentidos, a ideia da Índia como uma república secular foi um projeto idealista empreendido por seus líderes fundadores, incluindo Mahatma Gandhi, e o primeiro-ministro do país, Jawaharlal Nehru. Pensando na diversidade do país, eles definiram um Estado que não exclui a religião, mas mantém uma distância equivalente entre todas elas.
Os muçulmanos que continuaram na Índia depois da criação do Paquistão formavam a terceira maior população muçulmana do mundo. Havia também milhões de cristãos, sikhs e budistas, e o hinduísmo em si atraía multidões, distinguindo-se não apenas pela devoção a 30 milhões de divindades como também por sua rígida hierarquia de castas e de identidades culturais regionais.
Os membros da direita hindu ficaram chocados com o fato de que o fim da colonização britânica levou os muçulmanos a ganharem uma nação própria, o Paquistão, mas não proporcionou o mesmo para os hindus na Índia. Para eles, aquele era mais um capítulo de injustiça entre muitas, uma história que inclui várias invasões muçulmanas sangrentas e a submissão ao Império Mogol por séculos.
A princípio, esses hindus lutaram para transformar a raiva pela separação do território em um movimento político, não só por causa do trauma do evento, mas também em razão do estigma de um grave ato de terrorismo. Em 1948, um de seus ativistas, Nathuram Godse, assassinou Gandhi, que havia conquistado uma multidão de seguidores como ícone da não-violência e defensor da diversidade da Índia.
A visão secular dos fundadores permaneceu em vigor em grande parte devido às quase duas décadas de Nehru no poder. Mas ela repousava em uma base frágil. Não houve nenhum grande projeto de reconciliação histórica entre hindus e muçulmanos, afirma Abhishek Choudhary, autor de um livro recente sobre a ascensão da direita hindu.
Isso porque Nehru —”um político terrivelmente sobrecarregado”, nas palavras do escritor— estava centrado no imenso trabalho de garantir a sobrevivência imediata do país.
O avanço da direita ocorreu nas décadas que se seguiram à morte de Nehru. Quando seus descendentes —primeiro sua filha Indira Gandhi, e depois seu neto Rajiv Gandhi— fizeram pouco caso dos sentimentos da maioria do país na década de 1980 para se manter no poder, entraram em um jogo para o qual a direita hindu estava muito melhor preparada.
A principal organização da direita, Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), que completa cem anos em 2024, tem muitos braços, todos trabalhando em prol do mesmo objetivo. Quando um membro da RSS enfrentava repressão estatal, os outros podiam continuar atuando.
O que a ala direita não tinha era poder político. Um grupo relacionado à RSS já estava se agitando em torno da questão de um templo de Ram. O BJP, braço político da RSS, se juntou à causa.
Esses militantes argumentam que a mesquita de Babri, construída por um comandante militar do Império Mogol no século 16, havia sido erguida no lugar de um templo em honra a Ram. O movimento para reconstruir o local de culto na mesma área não tinha só a ver com uma divindade popularizada na Índia como exemplo de um governante justo e ético, mas também com a derrubada de um símbolo do opressor.
Depois de conquistar aliados por todo o país com a ideia da construção do templo de Ram, o BJP viu sua sorte política disparar nas eleições de 1989 e, novamente, em 1991. Não havia mais volta.
A campanha ganhou tanta força que, embora a disputa sobre o terreno ainda estivesse tramitando na Justiça, dezenas de milhares de militantes se reuniram no local em dezembro de 1992 para destruir a mesquita com cordas, marretas e as próprias mãos.
Alok Kumar, presidente do Vishwa Hindu Parishad, braço da RSS que liderou o movimento em defesa da construção do templo ao longo de décadas, diz que a destruição da estrutura mogol —que segundo ele os governantes muçulmanos haviam erguido para drenar a “vontade e autoestima” hindus— e a construção do templo de Ram eram cruciais para um renascimento do hinduísmo.
“Acho que quando aquela estrutura em Ayodhya foi derrubada”, diz Kumar, um advogado de fala mansa, à reportagem, “o complexo de inferioridade da raça hindu diminuiu”.
O tema continuou a manter seu potencial explosivo enquanto o caso se arrastava na Justiça. A morte de mais de 50 ativistas hindus em um incêndio em Gujarat quando voltavam de trem de Ayodhya, em 2002, desencadeou dias de violência brutal que deixaram mais de mil mortos no estado, de muçulmanos em sua maioria.
Modi, que na época era o governador de Gujarat, foi acusado de cumplicidade em relação aos tumultos, mas foi inocentado na Justiça.
Ele se tornaria primeiro-ministro 12 anos depois. Embora tenha feito campanha primeiro centrado na economia e em seguida, ao se reeleger cinco anos depois, na questão da segurança nacional, seu foco permaneceu nas prioridades da direita hindu. A vitória na luta pelo templo foi selada com uma decisão da Suprema Corte em 2019.