Uma faixa tremulava em março sobre um beco estreito em Nápoles, repleto de lojas turísticas vendendo figuras de presépios. Proclamava “Nápoles não apoia mais você”.
O “você” é o drama criminal italiano de enorme sucesso “Gomorra”. Dias antes, haviam começado a filmar “Gomorra: Origens”, no degradado bairro espanhol da cidade, traçando as raízes dos anos 1970 do principal clã do sindicato criminoso Camorra da série.
Talvez nenhuma referência da cultura pop moderna tenha se agarrado mais obstinadamente a Nápoles, a terceira maior cidade da Itália, do que “Gomorra”, título do best-seller de não ficção de Roberto Saviano de 2006 sobre a máfia napolitana. Um filme aclamado pela crítica seguiu em 2008, e a série de TV estreou em 2014 e durou cinco temporadas. Mais dois filmes estrearam em 2019: “O Imortal”, um spin-off, e “La paranza dei bambini”, baseado em um romance de Saviano sobre chefes do crime de apenas 15 anos. E agora há “Origens”.
Por isso, perdoem alguns napolitanos se eles dizem que já tiveram o suficiente. “Eles filmaram o primeiro; filmaram o segundo”, disse Gennaro Di Virgilio, proprietário de quarta geração de uma loja artesanal de presépios. “Basta.”
Outrora considerada perigosa demais e corrupta para atrair muitos estrangeiros, Nápoles tem vivido um boom turístico há anos. As redes sociais atraíram visitantes para a história, gastronomia e sol da cidade, ajudando Nápoles a se livrar de parte de sua reputação sombria, embora o desemprego juvenil e o crime permaneçam persistentemente altos.
Mas a cidade continua sendo estereotipada, dizem alguns napolitanos, reduzindo seus residentes àqueles envolvidos na “malavita”, a vida fora da lei.
“Por que só coisas ruins devem ser ditas sobre nós?”, questionou Delia D’Alessandro, cuja família fabrica artesanalmente “cornicelli”, amuletos vermelhos em forma de chifre que se acredita oferecerem proteção contra o mal. “Estou apaixonada pela minha cidade. Toda vez que faço um passeio à beira-mar ao pôr do sol, fico emocionada.”
Os criadores de ‘Gomorra’, que consideraram seus críticos como o resmungo de alguns poucos, expressaram gratidão a Nápoles e seus residentes. Depois que as filmagens de “Origens” terminaram no mês passado, o diretor Marco D’Amore agradeceu a Nápoles — “esta cidade-mundo única e rara” —no Instagram.
“Obrigado pela generosidade com que fomos abraçados”, escreveu, acrescentando: “Obrigado àqueles que nos defenderam, ao contrário daqueles que ofenderam, sem saber nada do que foi feito e com que respeito, estudo e paixão.”
Nápoles sempre transbordou de contradições: beleza e abandono, altruísmo e trapaças. O problema com as histórias de Gomorra, na visão de seus críticos, é que elas apresentam apenas o pior lado da cidade.
Ainda assim, alguns napolitanos abraçaram a produção artística.
Enquanto a série original estava no ar, alguns moradores se vestiam como os protagonistas para o Carnaval. Pelo menos uma loja na famosa Via San Gregorio Armeno, conhecida por suas figuras de presépio, vende estatuetas de alguns dos personagens principais: Ciro Di Marzio (também conhecido como “o imortal”) e Gennaro “Genny” Savastano, o jovem chefe da máfia, completo com seu característico colar de corrente. Recentemente, juntou-se a eles uma nova figura do papa Leão 14.
Riccardo Tozzi, produtor principal de “Gomorra: Origens”, defendeu a série, que, segundo ele, há muito tempo recorre à vibrante cena teatral de Nápoles para escalar atores locais e contratar equipes da cidade. As objeções dos detratores tiveram pouco peso para o público em geral, declarou: “Ninguém pensa: ‘Oh, Deus, não vou a Nápoles porque existe a Camorra’.”
Ele chamou a oposição à série de uma tentativa equivocada de censura artística “que não existia nem durante a era fascista“. E argumentou que uma narrativa sem concessões, mesmo que percebida como “negativa”, atrai o público. “O cartão postal do belo e do bom é chato”, disse ele.
A influência real da máfia em Nápoles diminuiu, mas não desapareceu. A Camorra evoluiu, dizem os especialistas, ainda traficando drogas e lavando dinheiro, mas não mais controlando grandes áreas do território.
O apertado bairro espanhol costumava ser infame por seus batedores de carteira e assaltantes; hoje, é um destino turístico mais conhecido por suas pizzarias e um mural gigante do astro do futebol argentino Diego Maradona, ídolo maior do Napoli.
Mas mesmo com uma presença menor da máfia, Nápoles e seus subúrbios sofrem com problemas enraizados que os visitantes das partes turísticas da cidade podem não ver, incluindo altas taxas de absenteísmo escolar, violência juvenil e desemprego. Esses males sociais, entre os piores da Itália, são especialmente pronunciados em bairros como Scampia, nos arredores de Nápoles, palco de uma violenta guerra territorial da Camorra há duas décadas, que foi relatada no livro “Gomorra”.
Gennaro De Crescenzo, professor da escola de ensino médio local Melissa Bassi, reconheceu os problemas contínuos de Scampia. Mas a maioria das grandes cidades enfrenta desafios sociais, acrescentou, e é injusto que seus alunos sejam “marcados indelevelmente” pelo infame bairro, embora “Gomorra” não filme lá há anos.
Ele disse que alguns de seus alunos que vão trabalhar no exterior descobrem que não podem escapar da mancha do antigo bairro. “Você é de Scampia?”, as pessoas perguntam. “Ah, ‘Gomorra’!”
“É um clichê”, disse Domenico Mazzella di Bosco, o diretor da escola. “É fácil de grudar, mas depois, vamos encarar, é difícil de remover.”
De Crescenzo disse que ele e outros estão considerando pedir um boicote a “Origens” quando estrear. Seu lançamento na Itália está previsto para o início de 2026.
Grande parte do filme “Gomorra” e das primeiras partes da série foi filmada em um vasto conjunto habitacional público de edifícios brancos e triangulares em Scampia chamado “Le Vele”, ou “As Velas”. Hoje, dois dos três Vele restantes estão vazios, isolados e pichados, com sua demolição lentamente em andamento. As autoridades evacuaram o terceiro Vele depois que uma passarela desabou no ano passado, matando três pessoas.
“Gomorra: Parem de se alimentar de nossas vidas”, dizia um grafite em italiano em uma das paredes.
Daniele Sanzone, que deu nome à sua banda em homenagem ao bairro, lançou uma música de rap em 2005 intitulada “Eu sou a Camorra”, que ele descreveu como um “hino para se rebelar” contra a máfia. Ele ainda vive no apartamento onde cresceu e lidera passeios por Scampia que ele chamou de “viagem pela história e além dos estereótipos”.
Ele disse que fica irritado quando alguém liga para perguntar especificamente por um tour dos locais onde “Gomorra” foi filmado. “Não faço isso”, disse ele. “Tento restaurar a complexidade de uma realidade fictícia que foi simplificada demais pela mídia.”
Em uma manhã recente, ele dirigiu pelo bairro com um turista australiano, apontando para um centro comunitário, um novo campus universitário e jardins cuidados pela comunidade. Os traficantes de drogas não ficam mais em cada esquina, disse ele, em parte porque seus negócios migraram para aplicativos de mensagens.
De volta ao bairro espanhol, Ciro Novelli havia colado um cartaz anti-“Gomorra” na porta de sua pequena mercearia que proclamava: “Estão avisados, usurários midiáticos de uma realidade que desonra nossa civilização.”
O problema com a mais recente ficção inspirada na Camorra, disse Novelli, é que nem sempre mostra como aqueles na “malavita” frequentemente acabam na prisão ou mortos.
Um cliente, Giuseppe Di Grazia, lembrou que, quando era jovem, os chefes da máfia eram temidos por muitos rapazes. Agora, acrescentou, um adolescente “quer imitá-lo, superá-lo, quer se tornar ele.”
Maurizio Gemma, diretor da Comissão de Cinema da Região da Campânia, disse que pode simpatizar com esses sentimentos sobre séries de crime, especialmente em lugares que lidam com violência. Mas, disse, a resposta não é “condenar a história”.
“Uma sociedade evoluída deve ser capaz de gerenciar suas contradições e também deve ser capaz de falar sobre suas contradições”, disse ele, “na esperança de que essas contradições sejam superadas e que esses problemas sejam resolvidos”.