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Mujica fala sobre rotina de tratamento contra o câncer – 26/08/2024 – Mundo

Há uma década, o mundo teve uma breve fascinação por José Mujica. Ele era o presidente do Uruguai que havia deixado o palácio presidencial de seu país para viver em uma pequena casa com telhado de zinco, com sua esposa e um cachorro de três patas.

Em discursos para líderes mundiais, entrevistas com jornalistas estrangeiros e documentários na Netflix, Pepe Mujica, como é universalmente conhecido, compartilhou inúmeras histórias de uma vida digna de filme.


Ele assaltou bancos como guerrilheiro urbano de esquerda; sobreviveu a 15 anos como prisioneiro, inclusive fazendo amizade com um sapo; e ajudou a liderar a transformação de sua pequena nação sul-americana em uma das democracias mais saudáveis e socialmente liberais do mundo.

Mas o legado de Mujica será mais do que sua história colorida e seu compromisso com a austeridade. Ele se tornou uma das figuras mais influentes e importantes da América Latina em grande parte por sua filosofia direta sobre o caminho para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz.

Agora, como Mujica diz, ele está lutando contra a morte. Em abril, ele anunciou que passaria por radioterapia para um tumor em seu esôfago. Aos 89 anos e já diagnosticado com uma doença autoimune, ele admitiu que o caminho para a recuperação seria árduo.

Na semana passada, viajei para os arredores de Montevidéu, capital do Uruguai, para visitar Mujica em sua casa de três cômodos, cheia de livros e potes de conservas de legumes, na pequena fazenda onde ele cultiva crisântemos há décadas.

Enquanto o sol se punha em um dia de inverno, ele estava agasalhado com um casaco de inverno e um gorro de lã em frente a um fogão a lenha. O tratamento o deixou fraco e quase sem comer.

“Você está falando com um estranho velho”, ele disse, inclinando-se para me olhar de perto, um brilho nos olhos. “Eu não me encaixo no mundo de hoje.”

E assim começamos.

Como está sua saúde?

Fizeram radioterapia em mim. Meus médicos disseram que correu bem, mas estou destruído.

[Sem ser perguntado.]

Eu acho que a humanidade, como está, está condenada.

Por que você diz isso?

Nós desperdiçamos muito tempo inutilmente. Podemos viver de forma mais pacífica. Pegue o Uruguai. O Uruguai tem 3,5 milhões de habitantes. Ele importa 27 milhões de pares de sapatos. Nós produzimos lixo e trabalhamos com dor. Para quê?

Você é livre quando escapa da lei da necessidade —quando você passa o tempo da sua vida com o que deseja. Se suas necessidades se multiplicam, você passa a vida cobrindo essas necessidades.

Os humanos podem criar necessidades infinitas. O mercado nos domina e nos rouba a vida. A humanidade precisa trabalhar menos, ter mais tempo livre e ser mais centrada. Por que tanto lixo? Por que você precisa trocar de carro? Trocar a geladeira?

Só há uma vida e ela acaba. Você tem que dar sentido a ela. Lute pela felicidade, não apenas pela riqueza.

Você acredita que a humanidade pode mudar?

Poderia mudar. Mas o mercado é muito forte. Ele gerou uma cultura subliminar que domina nosso instinto. É subjetivo. É inconsciente. Ele nos tornou compradores vorazes. Vivemos para comprar. Trabalhamos para comprar. E vivemos para pagar. O crédito é uma religião. Então estamos meio ferrados.

Parece que você não tem muita esperança.

Biologicamente, eu tenho esperança, porque acredito no homem. Mas quando penso sobre isso, sou pessimista.

No entanto, seus discursos frequentemente têm uma mensagem positiva.

Porque a vida é bela. Com todos os seus altos e baixos, eu amo a vida. E estou perdendo porque é minha hora de partir. Que sentido podemos dar à vida? O homem, comparado a outros animais, tem a capacidade de encontrar um propósito.

Ou não. Se você não o encontrar, o mercado fará com que você pague contas pelo resto da vida.

Se você o encontrar, terá algo pelo que viver. Aqueles que investigam, aqueles que tocam música, aqueles que amam esportes, qualquer coisa. Algo que preencha sua vida.

Por que você escolheu viver em sua própria casa como presidente?

Os resquícios culturais do feudalismo permanecem. O tapete vermelho. O clarim. Os presidentes gostam de ser elogiados.

Uma vez fui para a Alemanha e eles me colocaram em um Mercedes-Benz. A porta pesava cerca de 3.000 quilos. Eles colocaram 40 motocicletas na frente e mais 40 atrás. Eu fiquei envergonhado.

Temos uma casa para o presidente. São quatro andares. Para tomar chá, você tem que andar três quarteirões. Inútil. Deveriam transformá-la em uma escola secundária.

Como você gostaria de ser lembrado?

Ah, como eu sou: um velho louco.

Só isso? Você fez muito.

Eu tenho uma coisa. A magia da palavra. O livro é a maior invenção do homem. É uma pena que as pessoas leiam tão pouco. Elas não têm tempo.

Hoje em dia as pessoas leem muito em seus celulares.

Há quatro anos, joguei o meu fora. Ele me deixava louco. O dia todo falando besteira. Devemos aprender a falar com a pessoa dentro de nós. Foi isso o que salvou minha vida. Como fiquei sozinho por muitos anos, isso ficou comigo.

Quando estou no campo trabalhando com o trator, às vezes paro para ver como um passarinho constrói seu ninho. Ele nasceu com o programa. Já é um arquiteto. Ninguém o ensinou. Você conhece o pássaro hornero? Eles são pedreiros perfeitos.

Eu admiro a natureza. Eu quase tenho uma espécie de panteísmo. Você tem que ter olhos para ver. As formigas são um dos verdadeiros comunistas por aí. Elas são muito mais antigas do que nós e vão sobreviver a nós. Todos os seres de colônia são muito fortes.

Voltando aos telefones: você está dizendo que eles são demais para nós?

Não é culpa do telefone. Nós é que não estamos prontos. Fazemos um uso desastroso dele. As crianças andam por aí com uma universidade no bolso. Isso é maravilhoso. No entanto, avançamos mais em tecnologia do que em valores.

Ainda assim, o mundo digital é onde grande parte da vida é vivida agora.

Nada substitui isso [ele faz um gesto para nós dois conversando]. Isso é intransferível. Não estamos apenas falando por palavras. Comunicamos com gestos, com nossa pele. A comunicação direta é insubstituível.

Não somos tão robóticos. Aprendemos a pensar, mas primeiro somos seres emocionais. Acreditamos que decidimos com a cabeça. Muitas vezes a cabeça encontra os argumentos para justificar as decisões tomadas pelo instinto. Não somos tão conscientes quanto parecemos.

E está tudo bem. Esse mecanismo é o que nos mantém vivos. É como a vaca que segue o que é verde. Se há verde, há comida. Vai ser difícil desistir de quem somos.

Você já disse no passado que não acredita em Deus. Qual é sua visão de Deus neste momento da sua vida?

Sessenta por cento da humanidade acredita em algo, e isso deve ser respeitado. Existem perguntas sem respostas. Qual é o significado da vida? De onde viemos? Para onde vamos?

Não aceitamos facilmente o fato de sermos uma formiga na infinitude do universo. Precisamos da esperança em Deus porque gostaríamos de viver.

Você tem algum tipo de Deus?

Não. Eu respeito muito as pessoas que acreditam. É como um consolo diante da ideia da morte. Porque a contradição da vida é que é um programa biológico projetado para lutar para viver. Mas a partir do momento em que o programa começa, você está condenado a morrer.

Parece que a biologia é uma parte importante de sua visão de mundo.

Somos interdependentes. Não poderíamos viver sem os procariontes que temos em nosso intestino. Dependemos de uma série de bactérias que nem vemos. A vida é uma cadeia e ainda está cheia de mistérios.

Espero que a vida humana seja prolongada, mas estou preocupado. Há muitas pessoas loucas com armas atômicas. Muito fanatismo. Deveríamos estar construindo moinhos de vento. No entanto, gastamos em armas.

Que animal complicado é o homem. Ele é inteligente e estúpido ao mesmo tempo.

Fonte: Folha de São Paulo

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