[RESUMO] Autor sustenta que José “Pepe” Mujica, morto aos 89 anos, se lançou aos abismos do inconsciente durante os anos de prisão e transbordou os limites do ego e do individualismo, forjando uma trajetória que prova que substituir a ética patriarcal e capitalista do ter pelo paradigma do servir para ser não é utopia, mas exigência evolutiva.
A trajetória de José “Pepe” Mujica não foi apenas uma revolta contra as estruturas partidárias promotoras de desigualdades e a opressão da ditadura militar uruguaia. Foi uma jornada que transcendeu o plano externo, se convertendo em uma verdadeira odisseia interior.
Nela, os conflitos sociais se entrelaçaram com os conflitos psíquicos e a militância política tradicional deu lugar a um engajamento integrativo, crítico ao modelo econômico vigente —um sistema que fomenta o consumismo desenfreado, destrói o planeta, amplia desigualdades e aprofunda o sofrimento psíquico coletivo.
Sua história revela como a psique humana, ao ser confrontada com as dimensões sombrias do inconsciente, pode alterar radicalmente a percepção da realidade, passando a compreendê-la de forma mais sistêmica e integradora.
Mujica passou 14 anos encarcerado, 12 deles em uma cela solitária sem contato com o mundo externo: sem livros, sem diálogo, sem papel para escrever. Esse isolamento extremo o lançou aos abismos do inconsciente, onde foi inevitável o confronto com a consciência individual e coletiva. Foi nesse vazio radical que ele compreendeu, quase literalmente, que “alone” (sozinho) pode significar “all in one” (todos em um).
Para não enlouquecer, precisou dialogar com seu mundo interno, com seus personagens intrapsíquicos, onde sentido e significado puderam emergir. Ao integrar as diversas facetas da alma, encontrou uma paz que transcende as máscaras sociais do “ter”.
Nesse mergulho profundo, ao confrontar as sombras pessoais e coletivas, sua percepção transbordou os limites do ego e do individualismo. Ele percebeu que a “ética patriarcal, patrimonialista e capitalista do ter” —sustentada pelo culto ao prazer imediato, à razão instrumental, à fama efêmera e ao poder hierárquico— não era apenas um sistema econômico, mas uma verdadeira patologia da alma.
Uma doença que nos convida a viver em função do desejo e da carência, valorizando obsessivamente aquilo que não temos. A competição, antes idealizada como motor do progresso, se revelou uma farsa pirotécnica, que queima pontes entre seres humanos e gerações ao cultivar atitudes miseráveis, egoístas e meritocráticas como pilares de convivência.
Do deserto existencial e da solitude forçada, emergiu um novo paradigma: o servir para ser. Não como um altruísmo ingênuo, mas como uma ecologia relacional profunda. Mujica compreendeu que a verdadeira liberdade nasce quando se rompe a dicotomia entre o eu e o outro.
Sua luta deixou de ser contra inimigos externos, o que apenas perpetua a polarização, e passou a ser pela criação de espaços onde a igualdade se manifesta em gestos cotidianos, a fraternidade vira verbo ativo e o amor, despido de romantismos infantis, se transforma em ferramenta política e ética.
Esse despertar deu origem a um tipo raro de liderança: a sinarquia orgânica, em oposição à hierarquia piramidal. Mujica passou a tecer redes, tanto nas periferias esquecidas quanto nos salões de poder, substituindo a lógica da escassez pela ética do cuidado —um valor que aprendeu desde jovem, cultivando flores. Ensinou que incluir não é apenas tolerar diferenças, mas celebrar a interdependência. Afinal, um rio só flui quando acolhe seus afluentes.
Mesmo como presidente do Uruguai, nunca se afastou da simplicidade. Dirigia seu Fusca, vivia em sua modesta chácara e doava mais da metade de seu salário a programas de habitação popular. Amava a natureza, celebrava a vida, o silêncio e a simplicidade. Declarava não acreditar em Deus, mas torcia para estar errado.
Compreensivo nos modos de pensar e de agir, Mujica trocou a revolta partidária, que inevitavelmente divide, por uma revolução integrativa, que une e transforma. Sua prática política encarnou a verdadeira social-democracia progressista.
Ele nos mostrou que envelhecer e morrer fazem parte do ciclo natural da vida, acolhendo a própria doença com serenidade. Recusou o excesso de intervenções da medicina cooptada pelo capitalismo, afirmando que a morte também pode ser uma forma de cura.
Essa transição existencial, seu legado aos 89 anos, ecoa nas múltiplas crises que vivemos: climática, migratória, espiritual e existencial. Mujica se tornou um arquiteto de futuros possíveis, provando que substituir o “ter para ser” pelo “servir para ser” não é utopia, mas uma exigência evolutiva.
Sua trajetória não é sobre um herói idealizado, mas sobre o potencial adormecido em cada ser humano que ousa se perguntar: quem sou eu quando deixo de ser aquilo que possuo?
Que seus sucessores ousemos garantir o florescimento de sua existência, com entrega de alma e coerência de valores, honrando esse líder socialista que sempre soube amar o perfume da terra e da vida se despedindo de todos nós em um esplendoroso final feliz.