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Milhões nos EUA podem vetar condenações se elegerem Trump – 21/08/2023 – Ross Douthat

Duas semanas atrás eu argumentei que a multiplicação dos indiciamentos de Trump está acabando com todas as tentativas de simplesmente praticar política normal em 2024.

Para os adversários de Trump nas primárias republicanas e, eventualmente, para o presidente Joe Biden, os esforços em curso para colocar um ex-presidente na prisão vão moldar, distorcer e obscurecer todos os esforços para transmitir argumentos políticos mais prosaicos contra uma restauração de Trump.

Mas há um corolário desse ponto, algo que foi mostrado pela conjunção do indiciamento de Trump na Geórgia e um argumento de dois juristas conservadores de que o artigo 3 da 14ª emenda constitucional, que visava a excluir de qualquer cargo público os confederados que tivessem traído seus juramentos de lealdade à União, deve se aplicar a Trump após os acontecimentos de 6 de Janeiro.

Se os desafios legais a Trump têm o poder de moldar a política democrática de 2024, a moldagem do poder também funciona em sentido inverso. Quando procedimentos judiciais extraordinários alteram a política democrática, é inevitável que a arena judicial também seja politizada, enfraquecendo a alegação de que ela fica distante e acima das realidades democráticas.

Não estou expressando uma opinião sobre os méritos legais sobre qualquer dos indiciamentos de Trump. Não importa quão escrupuloso seja o procurador ou quão justo seja o juiz –levar a julgamento quatro vezes um homem que uma minoria considerável dos americanos pensa que deveria ser o próximo presidente é um ato político por sua própria natureza. E é um ato especialmente político quando os crimes estão intimamente ligados ao processo político, como é o caso nos dois indiciamentos mais recentes.

As acusações procuram demonstrar que nem mesmo um presidente está acima da lei. Mas, se Trump for escolhido candidato presidencial republicano, os processos acabarão potencialmente sujeitando o judicial ao político, a lei à política bruta, porque milhões de americanos poderão vetar as conclusões dos júris, na prática, simplesmente conduzindo Trump à Casa Branca outra vez.

E, mesmo que eles não façam essa escolha (penso que provavelmente não vão), mesmo que as pesquisas de opinião estejam agora superestimando a força de Trump (penso que provavelmente estão), a eleição inteira ainda assim será uma lição prática sobre a primazia do político, porque todo o mundo verá que as decisões dos tribunais não são na realidade finais –que o combate político é mais forte que a mera lei.

Podemos enxergar tudo isso e ainda assim sermos a favor dos processos contra Trump, encarando-os como um risco calculado, porém necessário, na esperança de que, depois que ele tiver perdido duas vezes, nos tribunais e nas urnas, isso restabeleça o tabu político em torno do tipo de comportamento pós-eleitoral que exibiu. E com base na teoria de que esse resultado justifica o risco de que a estratégia toda fracasse completamente, se ele vencer.

Se você encarar as coisas sob essa ótica, muito bem; você enxerga claramente, você está agindo movido pela razão. Minha preocupação é que poucas pessoas enxergam claramente o que se arrisca com esse tipo de processo, que muitos dos adversários de Trump ainda vejam alguma forma de ação legal como um trunfo –que pensem que, com o misto correto de interpretação estatutária e retidão moral, você pode simplesmente fazer a realidade política se curvar à sua vontade.

É isso o que penso, sem dúvida, ao ler o argumento de que a 14ª Emenda já desqualifica Trump da Presidência e que nenhum processo judicial além disso –nenhum julgamento por insurreição ou traição à pátria, nenhuma condenação— é necessária para que as autoridades o excluam de suas cédulas de voto.

Os autores desse argumento notável, William Baude e Michael Stokes Paulsen, são pensadores jurídicos conservadores da vertente originalista, e suas alegações se baseiam numa interpretação literal do texto da emenda e de sua história. Como não sou jurista, o fato de eu não achar esses argumentos remotamente plausíveis pode ser parcialmente descontado, razão por que chamo a atenção do leitor para duas críticas diferentes: uma de um estudioso conservador e amigo dos autores, Michael McConnell, da Universidade Stanford, e outra de um crítico do originalismo, Eric Segall, do estado da Geórgia.

McConnell sugere que, para não dar peso perigosamente antidemocrático às disposições da 14ª emenda, de modo que todo tipo de dissensão democrática normal pudesse ser vista como desqualificadora, temos de supor que elas dizem respeito a uma insurreição em massa, rebelião militar ou guerra civil explícita.

Aplicar os dispositivos a um protesto que virou insurreição, mesmo que tenha sido uma insurreição que atrapalhou a transferência do poder presidencial, corre o risco de ser um sério abuso de poder –”privando eleitores da chance de eleger nomes de sua escolha”— sem limitações adequadas a seu uso.

Enquanto isso, Segall contesta a alegação dos autores de que os dispositivos da emenda seriam “auto-executáveis” –podem ser aplicados a Trump ou a qualquer outro suposto insurrecionista imediatamente. Ele destaca que essa interpretação foi rejeitada em 1869 por Salmon Chase, então presidente da Suprema Corte, um ano após a ratificação da emenda, na única decisão judicial que temos sobre essa questão.

Isso é reconhecido por Baude e Paulsen, que argumentam extensamente que Chase estava equivocado. Mas eles ainda estão na posição dúbia de alegar que a leitura que fazem da emenda é a verdadeira interpretação “original”, buscando alguma forma de lidar com o problema de Donald Trump um século e meio mais tarde, em vez de a leitura feita na época da ratificação e que não foi contestada até agora.

E há uma questão para a qual eu, que não sou jurista, quero chamar a atenção (se bem que, destaco, Segall também o faz): mesmo considerando que Baude e Paulsen têm razão em algum nível puramente teórico de debate constitucional e que Chase ou outro qualquer fosse considerado totalmente equivocado, sua correção de nada adiantaria na realidade, e o que propõem seria politicamente tão desastroso, tóxico e contraproducente que nenhum jurista ou político responsável deveria cogitar colocá-lo em prática.

A ideia de que a melhor maneira de lidar com um populista demagogo que atrai seguidores justamente devido à desilusão que estes sentem com a ordem estabelecida seria que autoridades estaduais –na prática, autoridades estaduais do partido oposto— começassem a excluí-lo unilateralmente de suas cédulas eleitorais, com base em sua própria opinião sobre crimes pelos quais ele não foi processado…

Sinto muito, isso é inconcebível. Não deveria acontecer, e, se acontecesse, não funcionaria. E, se a resposta do téorico legal é que esta não é a “melhor” maneira de lidar com Trump, mas é a maneira que a Constituição requer, então azar de sua teoria sobre a Constituição.

Há uma ironia encerrada aqui, que é que um tipo semelhante de mentalidade legal influenciou a campanha de Trump para reverter os resultados da eleição de 2020. O argumento de John Eastman de que Mike Pence poderia se interpor entre os resultados oficiais da eleição e a posse de Joe Biden foi um argumento constitucional muito mais fantasioso do que o argumento de Baude e Paulsen.

Mas foi semelhante ao deles, na medida em que imaginou que uma interpretação particular da Constituição é algo que pode simplesmente ser considerada correta e então imposta por um ator particular –o vice-presidente, no caso de Eastman, autoridades eleitorais estaduais, no caso deles— sem levar em conta qualquer coisa que decorreria naturalmente no âmbito político.

Tivesse Pence realizado a manobra, o que provavelmente teria acontecido –como seu próprio advogado o preveniu— seria uma rejeição imediata pela Justiça ou o vice se posicionando sozinho em oposição às duas câmaras. (Isso parece ser uma razão por que a proposta sem pé nem cabeça de Eastman não foi uma rebelião conforme a definição feita pela 14ª emenda; se a secessão confederada pudesse ter sido derrotada com um apelo rápido à Suprema Corte, tampouco teria sido grande coisa como revolução.)

Mas imagine, por favor, um mundo em que Eastman, dias antes do 6 de Janeiro, tivesse descoberto algum pedaço de evidência histórica que elevasse o status de sua teoria de “raciocínio desesperado de motivação trumpista” para “uma ideia que merece alguma consideração acadêmica”. Imagine que mesmo apenas alguns poucos juristas liberais tivessem sido obrigados a ceder um pouco à posição dele.

Isso teria de qualquer maneira mudado a insensatez política absoluta da manobra de Pence, a impossibilidade de obter um resultado presidencial a partir do papel supervisor do vice-presidente, ou a desestabilização sem propósito que tal jogada acarretaria?

Eu diria que não –que, quando a teoria legal afeta a política dessa maneira, ela precisa necessariamente levar considerações políticas em conta; que apelar para a lei e para textos jurídicos não é o bastante para resolver uma questão se a realidade política estiver contra você. Esse é o entendimento desapaixonado que todos nós, enquanto assistimos aos indiciamentos extraordinários de Trump convergindo com a campanha extraordinária dele, precisamos levar em conta a caminho de 2024.

Fonte: Folha de São Paulo

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