Quando me mudei pra Barcelona, muitas lunas atrás, passei algum tempo sem entender o bar da esquina do lado de casa.
Chamado de “taverna de los indianos”, o local, pra minha perplexidade de guiri (gringa) ignorante recém-chegada, não servia comida indiana.
Em seu lugar, uma simpática trupe de peruanos me recebia com “tapitas” tipicamente espanholas (muito boas, por sinal) e uma carta de vinhos locais.
Não me ocorreu perguntar o porquê dessa aparente incongruência. Jornalista despistada, vinho demasiado distrax, coisas da vida.
Mas o enigma viria a se solucionar suave y espontaneamente durante uma conversa casual na casa dos sogros.
Meu sogro, canário natural da ilha de Gran Canária, recordava histórias de sua infância, criado pelos avós num pueblo quasi-rural chamado Casa Santa.
Correção: mais criado pela avó.
— Mi abuelo esteve pelo menos uns 15 anos indo e vindo das Américas, principalmente de Cuba –, lembra. A primeira vez, foi a Cuba em um barco a vela para trabalhar em uma plantação de cana.
— Negros e brancos bebiam águas de porrones distintos e estavam separados. Quando se juntavam, havia pelea (briga). Los machetes para cortar caña… às vezes alguém aparecia degolado.
— Cada vez que meu avô voltava de viagem, fazia um filho. E ficava às vezes dois, três anos antes de partir de novo. Muitos naquela época faziam isso, iam em grupo. E os que voltavam enriquecidos eram chamados de indianos: os que tinham regressado das Índias.
Daí soube: indianos, aqui, é como popularmente se chamam os emigrantes espanhóis que foram “fazer as Américas” — aka Índias Ocidentais — em busca de riquezas em países como Cuba, Argentina e Porto Rico, sobretudo entre os séculos 19 e 20.
Entre as duas últimas décadas do século 19 e 1959, quase cinco milhões de espanhóis se mandaram para o Novo Continente — o equivalente a um quarto da população do país –, empurrados pela pobreza e pela promessa de novas oportunidades.
O avô do meu sogro foi um desses, embora, até onde eu saiba, não tenha feito grande fortuna. “Os indianos”, lembra, “quando voltavam da América, vinham de branco, vestidos com botas e polainas, símbolos de status“.
De suas longas viagens, os indianos traziam consigo chapéus panamá, puros cubanos e muitas riquezas, mas também conhecimentos sobre últimas tendências e práticas comerciais e industriais, que usariam para turbinar a indústria local, a construção de ferrovias, a urbanização, infraestrutura, cultura.
Muitos conterrâneos os viam como ídolos; outros os criticavam. Mas é fato que, historicamente, os indianos aceleraram a prosperidade do país.
Alguns — não todos — fizeram fortuna com navios negreiros. Essa parte obscura da história indiana é abordada, por exemplo, na reportagem da BBC The Complicated Legacy of Spain’s super-rich ‘indianos’ (O complicado legado dos espanhóis ‘indianos’ super ricos).
São remanescentes dessa época de “ouro” indiana as villas ou casarões que se ergueram em toda a Espanha com os lucros d’além-mar, adornados com muito rococó de neo-rico, inspirados na última moda das arquiteturas francesa e americana e com alguns detalhes que recordam a arquitetura mudéjar (de influência muçulmana).
É comum encontrar essas casas históricas em pueblecitos remotos ou regiões tão diversas como Galícia, Astúrias, País Basco e até aqui na Costa Brava, no povoado próximo a Barcelona onde vivo hoje em dia.
Meu namô mesmo tem um punhado de amigos cuja família conta com indianos entre os antepassados. Aqui, é comum identificar as casas indianas pela fachada portentosa, pintada de cores vivas, e sinalizada com pelo menos uma palmeira imperial no jardim da frente — espécie não-nativa, isto é, ostensivamente importadis, que os indianos adoravam ter no quintal.
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O CARNAVAL DOS INDIANOS: A FESTA DO TALCO
Quem quiser mergulhar nessa tradição histórica pode vir pras Canárias no Carnaval e conferir a famosa festa dos Indianos em Santa Cruz de La Palma.
Na segunda-feira de Carnaval, uma multidão vestida de branco se reúne ao som de músicas com influência caribenha.
Encenam o que seria o desembarque dos indianos, a chegada dos viajantes depois de fazer fortuna na América.
Bailam entre nuvens de talco [aye, a rinite que eu num tenho], alusão ao costume antigo de empoar-se pra parecer mais alvo, ou, segundo outras fontes, referência à sociedade secreta dos ñáñigos cubanos: é o carnaval de los indianos, um dos eventos estrela do famoso carnaval das Ilhas Canárias.
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Bom, se os indianos são os egressos das Américas, como se chamam então os indianos da Índia em castelhano?
Ahá.
Em español, são indias e indios.
Este vocábulo (indio), por sua vez, não é em geral considerado adequado para se referir aos indígenas, ou seja, povos nativos de determinado lugar. Pelo menos em parte da América Latina, o termo indio tem uma conotação negativa, por impreciso e por, de certa forma, carregar consigo o olhar colonizador, generalizador e inferiorizador.