O acordo entre Israel e o Hamas não muda em nada o rumo dos processos em curso no TPI (Tribunal Penal Internacional) e na Corte Internacional de Justiça, que tentam responsabilizar os envolvidos em uma coleção interminável de crimes de guerra cometidos ao longo de mais de 400 dias.
Ambas as instâncias judiciais, sediadas em Haia, na Holanda, foram provocadas no curso desta guerra e mantêm intactas suas prerrogativas para emitir sentenças que podem tanto contribuir para uma reconciliação quanto para redobrar os ressentimentos na região.
Binyamin Netanyahu ainda pode ser preso. A ordem, expedida contra ele pelo TPI em novembro de 2024, não se extingue com a suspensão do conflito. O mesmo ocorre com Yoav Gallant, ex-ministro da Defesa de Israel, que apesar de ter sido demitido do cargo no ano passado, continua exposto ao risco de captura.
A prisão de ambos pode se dar de duas formas. A primeira é por meio de uma ordem expedida pela própria Justiça israelense. A Justiça nacional sempre tem primazia sobre seus cidadãos e, caso se mova na direção de responsabilizá-los, paralisa o avanço das medidas internacionais.
Se hoje é impossível que a Justiça de Israel se ocupe de Netanyahu, Gallant e outros líderes políticos envolvidos no conflito e na crise dos reféns, não convém descartar por completo a hipótese de que, no futuro, comissões parlamentares de inquérito protagonizadas por desafetos e opositores revelem fatos até então desconhecidos, motivando reações na sociedade que provoquem o Judiciário a reagir.
O custo de medidas assim é, no entanto, impensável hoje para a coesão bélica que o massacre de 7 de outubro de 2023 criou na sociedade israelense. Apesar de multifacetada e dividida em relação a Netanyahu, essa sociedade tem em comum o fato de ter se tornado blindada em relação a uma opinião pública internacional mais preocupada com as mortes em Gaza.
A segunda hipótese de prisão de Netanyahu e Gallant é caso eles visitem um dos 125 Estados que se submetem ao TPI, incluindo 20 dos 27 países-membros da União Europeia, cujas capitais todo rico gosta de visitar. Calcular as férias em função do risco de prisão é algo eternamente vexatório.
Do ponto de vista de processos individuais, existe ainda o risco crescente de que qualquer advogado, a qualquer momento, em qualquer parte do mundo, mova uma ação contra israelenses suspeitos de envolvimento em crimes de guerra. O instrumento legal que permite isso chama-se jurisdição universal.
Esse recurso foi evocado no fim dos anos 1990 por um juiz espanhol que processou Augusto Pinochet quando o ex-ditador chileno viajou a Londres para um tratamento médico. Mais recentemente, embasou uma ordem de prisão emitida em 30 de dezembro pela Justiça argentina contra o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, antes de aparecer mais perto de nós: num inédito pedido de investigação feito contra o soldado israelense Yuval Vagdani quando ele visitou a Bahia no fim do ano.
Vagdani foi para a Argentina antes de ser investigado no Brasil, mas muitos como ele continuam convivendo com esse risco, já que organizações como a Fundação Hind Rajab vêm financiando processos semelhantes em várias partes do mundo e não deve parar tão cedo.
Fora os casos individuais, Israel pode ainda ser condenado, enquanto Estado, na Corte Internacional de Justiça. O processo não colocaria ninguém na cadeia, mas seria um revés moral para o governo de um país que evoca o Holocausto para contextualizar sua fundação, em 1948, e que responde por genocídio, numa ação movida pela África do Sul.
Do lado palestino, também houve ordens de prisão emitidas pelo TPI, mas alguns desses integrantes do Hamas foram mortos e outros ainda têm paradeiro desconhecido. Pouca coisa sobrou para ser responsabilizada judicialmente debaixo de 40 mil corpos em Gaza, incluindo muitos dos responsáveis pelos diversos crimes de guerra cometidos no 7 de Outubro.
“Sempre há o discurso de que os processos (judiciais) prejudicam os acordos de paz. Balela. Não haverá paz duradoura se os crimes não foram punidos. A história nos mostra isso”, disse na terça-feira (14) à Folha Sylvia Steiner, brasileira que foi juíza do TPI de 2003 a 2016.