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Gabriel Boric: Militares do Chile são constitucionalistas – 11/09/2023 – Mundo

“Para mim, política não é um jogo de aritmética”, diz o presidente do Chile, Gabriel Boric, em entrevista exclusiva à DW. “Acredito que a democracia, para ser fortalecida e preservar a si mesma, precisa saber como responder às necessidades de nossos cidadãos.”

Nesta segunda-feira (11), que marca o 50º aniversário do golpe de Estado no Chile, Boric fala sobre o atual papel das Forças Armadas, os desafios enfrentados por seu governo e as mudanças por que passou desde sua posse, em março de 2022.

“Assumir o cargo de presidente do Chile significa que você tem que se adaptar a certas coisas. Está governando um país inteiro e, portanto, representa toda a sociedade, quem votou em você e quem não votou.”

“Mas meu anseio por justiça social, por transformação social, por progresso em direção a uma distribuição mais justa da riqueza, em direção ao fim total da discriminação contra as mulheres e a diversidade sexual, em direção a um desenvolvimento que seja justo e integral, permanece intacto”, acrescentou, reafirmando-se como “uma pessoa com convicções de esquerda”.

Presidente mais esquerdista desde Allende

A posição política e o fato de Boric ser o chefe de Estado mais à esquerda que governa o Chile no último meio século marcam o cinquentenário do golpe no qual o ex-presidente Salvador Allende teve um papel muito especial.

Se tivesse a chance, Boric agradeceria ao presidente deposto por seu compromisso, coragem e sacrifício. Parafraseando o famoso discurso de Allende em 11 de setembro de 1973, “eu diria a ele que estamos trabalhando duro para seguir seus passos, esperando ‘continuar abrindo grandes avenidas novamente, onde homens e mulheres livres possam caminhar juntos para construir uma sociedade melhor'”.

As repercussões presentes do golpe liderado pelo general Augusto Pinochet estão longe de ser unânimes na sociedade chilena. Em 2022, isso se refletiu na recusa de partidos de direita e centro-direita em assinar o assim chamado Pacto pela Paz para melhorar a convivência por meio de acordos de respeito democrático.

“Continuamos a ter diferenças quanto ao motivo dessa ruptura institucional, e vejo com preocupação muitos líderes de direita que insistirem na ideia de que, sem Allende, não teria havido Pinochet. Significa que, se houver outro governo constitucional do qual eles não gostem e um clima de polarização e dificuldades políticas, a resposta será um golpe de Estado e uma ditadura.”

Por esse motivo, o presidente concorda com os membros do Partido Comunista, que integra a aliança governamental, ao apontarem que o pacto proposto é o “básico” a ser feito. “De fato, é o mínimo. Espero que a sociedade chilena concorde comigo quando digo que sempre resolveremos os problemas da democracia com mais democracia, e não com menos. E que nada jamais justificará a violação dos direitos humanos de quem pense de forma diferente.”

Por outro lado, Boric, vê como um avanço positivo o fato de todos os ex-presidentes vivos do Chile, incluindo o centro-direitista Sebastián Piñera, terem aderido ao Pacto pela Paz.

Sem perigo de outro golpe

Quando questionado sobre a possibilidade de a sociedade chilena sofrer uma guinada ultraconservadora ou sobre o aumento de visões mais radicais em todos os setores, Boric diz não acreditar que esse seja o caminho à frente.

“Estamos esperando há dez anos por uma reforma previdenciária. A confiança que os chilenos têm na democracia como um mecanismo para resolver seus problemas está enfraquecida. A democracia, no meu ponto de vista, termina em si mesma, e temos que cuidar dela constantemente, regá-la”, afirma, defendendo que a democracia é “baseada no consenso”.

“A arte da política, a arte de [propor e aplicar] políticas justas, é chegar a acordos entre os que pensam de forma diferente, em prol de um bem comum compartilhado. E, quando as sociedades se polarizam, esse bem comum compartilhado pode ficar mais distante.”

Boric acredita, no entanto, que não há risco de os eventos de 1973 se repetirem no Chile: “Seria irresponsável da minha parte dizer isso. Acredito que a oposição está desempenhando um papel que, de fato, resultou em bloqueios de certas reformas. Isso faz parte de como a democracia funciona, e cabe a nós buscar e explorar novas formas de se chegar a acordos.”

O presidente do Chile destaca os recentes avanços que o país fez em relação aos royalties de mineração ou à redução da semana de trabalho para 40 horas e garante que confia nos militares: “Agora tenho certeza de que as Forças Armadas não estão querendo se envolver em nenhum tipo de aventura e que são firmemente constitucionalistas e respeitam a Constituição e o Estado de direito.”

Democracias nunca estão ‘totalmente consolidadas’

A segurança de Boric também se encontra na força da democracia chilena e suas instituições, mas ele também faz um alerta: “A democracia chilena é uma democracia que ainda está em construção. Eu não diria que há um ponto em que as democracias estão totalmente consolidadas, porque as sociedades mudam e, com as mudanças, surgem novos desafios.”

“A inclusão do movimento feminista em nossa sociedade, por exemplo, tem sido muito orgânica, dada a forma como a política era entendida até dez anos atrás. A antiga ideia de desenvolvimento infinito a qualquer custo, hoje, não é apenas questionada, mas vista como algo que pode colocar em risco a própria sobrevivência da humanidade. Portanto as democracias estão constantemente se aperfeiçoando.”

Atrelando-se ao fato de que a ditadura chilena surgiu no contexto da Guerra Fria, que acarretou vários golpes de Estado na América Latina, Boric ressalta que “o poder das armas é insuficiente”.

“Ele desaparece com o tempo. Corpos podem desaparecer, pessoas podem ser assassinadas, companheiros podem ser torturados, mas a dignidade de quem caiu e de quem luta por um país livre sempre acaba prevalecendo. E isso é válido para a história do Chile, da Argentina, do Uruguai, do Brasil e de tantas outras ditaduras latino-americanas —ou do mundo.”

Defesa da democracia e dos direitos humanos

Boric, cujo mandato presidencial de quatro anos começou em 2022, após uma vitória esmagadora sobre o ultraconservador José Antonio Kast, tem se destacado no cenário internacional por sua condenação a ditaduras de esquerda na América Latina. Ele diz não temer críticas.

“Estou convencido de que, em termos de direitos humanos, devemos ter um padrão único, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista de toda a sociedade e, portanto, não podemos sair por aí escolhendo de quais autocracias gostamos e de quais não gostamos.”

“Se valorizamos e defendemos a democracia e, em particular, o respeito universal pelos direitos humanos como um avanço da humanidade, temos que defender isso na esquerda, no centro, na direita, quer sejamos vermelhos ou azuis. E continuarei firme nisso, não importa quem fique incomodado.”

Papel dos EUA no golpe de 1973

Boric também se manifestou favorável ao recente gesto dos Estados Unidos de tornar públicos documentos que descrevem o papel americano no golpe de 1973: “O embaixador dos EUA no Chile tem se mostrado muito aberto a isso. Alguns documentos já foram divulgados, e acredito que a posição dos EUA, hoje, é clara quando se trata de condenar o que aconteceu.”

“No entanto, sempre podemos fazer mais. O governo [Richard] Nixon, na época, fez todos os esforços possíveis —e tudo isso está documentado—, primeiro, para impedir que o presidente Allende assumisse o cargo, e depois para dificultar e criar as condições de caos que permitiram o golpe.”

Ele afirma que solicitará também todas as informações existentes sobre a suposta colaboração do serviço de inteligência alemão com a ditadura de Pinochet e também sobre a seita alemã Colonia Dignidad, que cooperou com o regime.

“Conversei sobre isso com o premiê [alemão Olaf] Scholz nas poucas vezes em que o encontrei. Pelo que vi, acho que ele está interessado em colaborar com tudo relacionado à investigação e ao reconhecimento do que aconteceu em Colonia Dignidad.”

Já há um acordo para instalar placas em memória das vítimas da seita alemã, embora ainda não tenha havido avanços práticos nesse sentido. Embora para isso, segundo Boric, seria necessário “apenas um pouco de força de vontade”.

“O que está claro para nós é que ainda há muitos elementos obscuros por aí, mesmo 50 anos após o colapso da democracia no Chile. Portanto, continuaremos a lutar pela verdade e pela justiça.”

Fonte: Folha de São Paulo

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