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Em Guantánamo, não vi a vigilância distópica que imaginei – 04/03/2024 – Mundo

Tenho uma confissão a fazer: eu furei o esquema de segurança militar de Guantánamo. Sem querer.

Visitar a base americana em Cuba como repórter implica seguir uma série de regras, às quais eu tive que me comprometer a obedecer assinando um documento do Pentágono antes da viagem, que fiz entre segunda-feira (19 de fevereiro) e sábado (24 de fevereiro). As diretrizes são ainda mais rígidas em Camp Justice, área onde fica o complexo que abriga a Corte em que correm os processos contra os acusados do 11 de Setembro.

Assim, não foi sem surpresa que me deparei com um homem relaxado, de bermuda, chinelos e óculos de sol em cima da cabeça, me explicando os procedimentos de segurança assim que cheguei à base. Ele fez um crachá especial para eu circular na área, falou algo sobre um atirador de elite e resumiu suas orientações assim: “Meus dois filhos moram aqui. Não tirem fotos que possam colocar eles em risco, por favor”.

O vaivém burocrático das semanas anteriores e o relato de outros repórteres fizeram eu me preparar para um cenário muito mais pesado do que o que encontrei. Sim, é rígido. Sim, todas as minhas fotos e os vídeos precisaram ser revisados pelo Departamento de Defesa antes de eu sair de Guantánamo, e alguns foram apagados. O dia a dia, porém, está longe da vigilância distópica que havia imaginado.

A rotina dos jornalistas — éramos um grupo de cinco— é se encontrar de manhã no centro de imprensa e seguir juntos até o complexo onde acontece a audiência. Uma van ficava à nossa disposição, dirigida por nossa acompanhante da vez (eram duas, ambas civis, que se dividiam em dois turnos).

Depois de semanas de temperaturas próximas de zero em Washington (EUA), eu preferi ir caminhando um dia para aproveitar o sol, e acabei ficando para trás. Chegando à Corte, deixei meu celular em uma caixinha na parede —eletrônicos são proibidos a partir dali— e segui pela porta mais próxima.

Era a porta errada.

Percebi somente quando cheguei direto no segundo ponto de revista de segurança; ali me dei conta de que havia pulado o primeiro. Tensa, perguntei aos repórteres veteranos o que eu deveria fazer. De olhos arregalados, eles falaram que ninguém nunca havia feito isso. “Parabéns!”, me disseram, dando risada.

Passei o resto do dia prendendo a respiração toda vez que um militar entrava na galeria, como é chamada a área onde ficam os espectadores do tribunal. Nada aconteceu (pelo menos até este texto ser publicado).

Ao mesmo tempo, não pude visitar uma série de lugares —o principal, a prisão.

Minha colega Patrícia Campos Mello, quando esteve na base em 2013, participou de um tour por algumas das instalações, pelo menos. Dessa vez, pude ver o centro de detenção apenas à distância, da estrada (que não posso especificar qual é, segundo as regras que assinei).

Os procedimentos mudam com frequência e até mesmo os responsáveis por fiscalizá-los se perdem.

Em seu 23º ano de operação, com o ápice da Guerra ao Terror que motivou sua abertura tão distante no tempo, todos parecem estar um pouco cansados e até insatisfeitos com as arbitrariedades de Guantánamo.

Consigo circular desacompanhada por restaurantes, um bar, o supermercado, a marina. Consigo conversar com os trabalhadores jamaicanos e filipinos terceirizados. Consigo até que aprovem a fotografia de uma camisa da seleção brasileira assinada por Pelé que tirei em um lugar onde imagens estavam em tese proibidas.

Lançando mão de uma reflexão feita em outra ilha ocupada por americanos na América Central: a vida encontra um meio (ou a jornalista erra o caminho).

Fonte: Folha de São Paulo

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