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Donald Trump soube controlar sua imagem mesmo entre tiros – 15/07/2024 – Ilustrada

Se tivéssemos visto o ataque ao ex-presidente Donald Trump apenas pela televisão, teria parecido chocante, mas também confuso. O candidato se joga no púlpito depois que um tiro o atinge de raspão na orelha. Agentes do Serviço Secreto entram em ação. Ele se levanta, faz gestos para a multidão e é levado às pressas, sob aplausos.

Mas as fotografias da tentativa de assassinato contam outra história. O sangue escorrendo da orelha até os lábios de Trump mostra o quão perto o ex-presidente chegou da morte. Seu punho erguido é um sinal de que ele não vai se render. Na televisão, só havia tumulto, mas, na lente dos fotógrafos, o horror do ataque foi traduzido em encarnações de autoridade, desafio e um quase martírio.

Entendo a tendência de buscar analogias visuais quando eventos extraordinários acontecem. A bandeira americana tremulando atrás do rosto ensanguentado de Trump em algumas das fotos pode lembrar superficialmente uma tradição romântica de heróis nacionais, reais ou alegóricos, ensanguentados.

Um observador desatento poderia facilmente associá-las ao quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugène Delacroix, no qual uma mulher que personifica a França ergue uma bandeira em seu braço direito, ou “A Morte do Major Peirson”, de John Singleton Copley, uma pintura histórica de um general vitorioso morrendo sob a bandeira britânica.

As pessoas gostam dessas analogias visuais porque elas conferem pedigree ao fotojornalismo. Elas dão distinção às fotografias dentro do fluxo de imagens intenso do dia a dia e inscrevem o passado no presente. Mas, por uma questão moral, sempre me incomodei com a tentação de tratar imagens de sofrimento como objetos de análise estética. E essas analogias subestimam algo maior, que é a mudança na maneira como tratamos as imagens hoje. Até a imagem mais icônica virou algo mutável.

As filmagens da televisão capturaram o caos em tempo real, com Trump no chão por um minuto inteiro, abaixado até que o Serviço Secreto gritasse que estavam em segurança. Depois, ele ergueu o punho —o que já foi considerado um gesto da esquerda, um símbolo de resistência comunista e do movimento Black Power.

Na televisão, o punho erguido teve o mesmo papel do sinal de sobrevivência que jogadores de futebol feridos mostram para a câmera ao vivo. Nas fotografias, porém, o gesto teve um aspecto mais belicoso, sugerindo coragem e invencibilidade.

Em outras palavras, a força da fotografia não está apenas no que ela retrata, mas no que ela diz sobre tal retrato, algo que Trump parece entender melhor do que qualquer outro político de seu tempo. Após duas semanas em que o presidente Joe Biden esteve sob os holofotes por sua aparência de fragilidade, Trump teve o instinto, mesmo em meio ao perigo mortal, de pensar em como tudo deveria ser retratado.

As imagens viajavam lentamente quando os presidentes Abraham Lincoln e James Garfield foram baleados no século 19, época em que cabia aos ilustradores representar, ou até inventar, o que tinha acontecido com o chefe de estado assassinado.

Quando os presidentes Gerald Ford e Ronald Reagan enfrentaram tentativas de assassinato no século 20, enviar imagens ainda exigia transmissores enormes. Agora, a câmera é seu próprio meio de transmissão, e cada imagem que ela produz pode se tornar um vetor de defesa, oposição ou propaganda sem qualquer vínculo.

O rosto ensanguentado e o punho erguido de Trump podem aparecer na capa da Time, mas a circulação da revista é insignificante em comparação com os compartilhamentos que impulsionaram essas imagens mundo afora.

Os admiradores mais fervorosos de Trump frequentemente o retratam como um super-herói. Em memes e souvenirs, ele posa como um todo-poderoso distante da realidade. No domingo, sua campanha enviou um e-mail de arrecadação de fundos apresentando uma nova versão de um desses ícones invencíveis, em preto e branco e com granulado, para sugerir que fosse uma fotografia mais antiga. Uma imagem histórica?

Não há mais história. Apenas o presente perpétuo de conteúdo, algo que Trump entende mesmo em meio a tiros.

Crítico de arte do New York Times

Fonte: Folha de São Paulo

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