Para entender a dinâmica do conclave que se inicia, é preciso abandonar a pergunta habitual, “quem será o próximo papa?“, e reformulá-la: “quais geografias de Igreja disputarão sua legitimidade simbólica e institucional?” A sucessão pontifícia de 2025 revela menos sobre indivíduos e mais sobre rearranjos estruturais que, há anos, vêm redesenhando silenciosamente o corpo global do catolicismo. As formas de autoridade se deslocam, e com elas, mudam também os modos de fazer Igreja.
Nos bastidores, analistas convergem em uma percepção. Já não são os alinhamentos doutrinários que organizam o jogo sucessório. O que orienta a dinâmica atual é a distribuição regional do poder eclesial —sua capacidade de articulação, de formar alianças e de oferecer experiências pastorais com densidade simbólica. O centro de gravidade da Igreja já não coincide com seu centro geográfico tradicional.
Essa transformação é resultado de uma década de pontificado de Francisco. Ao nomear a maioria dos cardeais eleitores, oriundos de mais de 70 países, o papa deslocou o eixo do poder, descentralizou a Cúria e conferiu visibilidade às chamadas periferias eclesiais. O efeito é um conclave sem hegemonias claras, onde nenhuma região domina sozinha e nenhuma pode ser ignorada.
A Ásia desponta como o bloco mais coeso. Suas igrejas, muitas vezes inseridas em sociedades plurirreligiosas, desenvolveram práticas de convivência e diálogo que conferem ao episcopado asiático um perfil marcadamente pastoral. A Federação das Conferências Episcopais Asiáticas ajudou a consolidar uma cultura de colegialidade, e o cardeal Luis Antonio Tagle (das Filipinas) sintetiza essa experiência. Sua figura encarna uma Igreja discreta, mediadora, alinhada ao estilo promovido por Francisco.
A Europa, em contraste, aparece marcada por fragmentações. Alemães, franceses e poloneses seguem trajetórias distintas. Já os italianos, embora com peso numérico, já não impõem direção. Sua influência tornou-se mais negociada do que natural.
Na África, a vitalidade da Igreja é inquestionável. Crescem os fiéis, as vocações e as vozes com autoridade simbólica. Mas as diferenças internas são significativas. Cardeais como Fridolin Ambongo (República Democrática do Congo) e Peter Turkson (Gana) compartilham a defesa da sinodalidade —modelo eclesial baseado na escuta mútua, na participação e na corresponsabilidade— mas divergem em temas doutrinários e morais. Ainda assim, o continente tem margem de manobra para atuar como mediador entre blocos.
A América Latina, embora numericamente expressiva, chega fragmentada. O Brasil carece de articulação regional. A Argentina, terra natal de Francisco, permanece relativamente isolada. O México oscila entre compromissos locais e vínculos com o centro romano. O que poderia ser um bloco com força estratégica se dispersa em agendas e fidelidades distintas.
Dessa nova configuração decorrem três implicações principais. A primeira é a exigência de pactos amplos. Nenhuma região vence sozinha. A segunda é simbólica: um papa asiático ou africano consolidaria a transição demográfica do catolicismo. Um europeu, especialmente um italiano, não representaria uma volta ao passado, mas talvez uma reaproximação institucional com Roma. A terceira é de natureza eclesiológica. O conclave decidirá se a Igreja seguirá aprofundando a lógica sinodal ou se buscará reafirmar a centralidade romana como eixo de governo.
Mais do que uma eleição pontifícia, este conclave expressa uma disputa entre mapas e modelos de Igreja. Está em jogo não apenas quem liderará o catolicismo mundial, mas que imaginação institucional ganhará legitimidade num cenário marcado por transformações culturais profundas e tensões globais em expansão.