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Como Israel destruiu uma cidade de 200 mil pessoas em Gaza – 16/01/2025 – Mundo

No dia em que a farinha acabou e o telhado danificado de sua casa de dois andares não segurava mais a chuva, a família de Abdallah Abu Saif colocou o avô de 82 anos em uma carroça puxada por um burro e fugiu de Jabalia.

Fraco pela fome, surdo após meses de ataques aéreos e vagamente ciente de que talvez nunca mais voltasse, Abu Saif pediu ao neto mais novo que o ajudasse. Ele queria ver uma última vez os marcos de sua vida: o salão de festas onde casou quatro filhos; a escola onde estudou e depois ensinou; o cemitério onde seus pais foram enterrados.

Mas naquele dia de novembro “não havia nada para ver”. “Nada restou, apenas ruínas e escombros”, disse seu filho, Ibrahim. “Toda a sua vida foi apagada. Tudo o que resta são suas memórias.”

Nenhum lugar em Gaza foi poupado da força destrutiva do Exército israelense e de seus bombardeios ferozes desde o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, que desencadeou a guerra atual —nesta quarta (15), mediadores chegaram a um acordo de cessar-fogo para suspender os combates que deverá entrar em vigor no domingo (19).

Ao longo do conflito nenhum lugar foi mais destruído do que Jabalia, outrora uma cidade antiga que, após a guerra de 1948, deu seu nome ao campo de refugiados da região.

O campo cresceu e se tornou um dos maiores dos territórios palestinos, com Jabalia e suas ruas circundantes abrigando cerca de 200 mil pessoas —incluindo mais de 100 mil refugiados oficialmente registrados, segundo a ONU e autoridades locais.

Ninguém jamais descreveu Jabalia como bonita. Mas sempre foi uma parte vibrante da vida palestina: orações na mesquita Al-Awda, shawarmas na rotatória dos Seis Mártires, romances abençoados no Salão de Casamentos de Bagdá.

Compradores viajavam de toda Gaza para o movimentado mercado, atraídos por seus preços baixos, bem como pelos sorvetes e bolos da famosa loja Al-Zatoun, no coração do Souq.

O famoso “edifício de doces orientais” de três andares, chamado Al-Qadi, era outro atrativo. Moradores locais se reuniam para festas de aniversário em seu salão, enquanto milhares de pessoas encomendavam pratos para celebrar os resultados dos exames do ensino médio.

O Clube de Esportes Jabalia Service era o centro do futebol de Gaza, sediando partidas locais enquanto o Café Raba’a, nas proximidades, exibia jogos que iam desde a Liga dos Campeões da Europa até o campeonato egípcio. Artistas cantavam e tocavam nas noites musicais do café.

Tão implacável tem sido o ataque de Israel, e tão completa a destruição —não apenas em Jabalia, mas também em Beit Lahia e Beit Hanoun, nas proximidades— que um ex-ministro da Defesa israelense descreveu, no final do ano passado, as ações militares no norte de Gaza como limpeza étnica.

“Não há Beit Hanoun. Não há Beit Lahia. Eles [o Exército israelense] estão atualmente operando em Jabalia, e essencialmente, estão limpando a área de árabes”, disse Moshe Yalon à TV local. Criticado por seus comentários, ele insistiu, dizendo a um segundo entrevistador que “é limpeza étnica”. “Não há outra palavra para isso.”

As Forças de Defesa de Israel afirmam que estão focadas em destruir o Hamas. “É desnecessário dizer que não há doutrina que vise causar danos à infraestrutura civil”, disse o Exército.

Visto de cima, o campo de refugiados de Jabalia agora é formado por escombros até onde os drones podem registrar. Suas ruas outrora vibrantes estão enterradas sob os destroços de dezenas de milhares de casas. Em toda a faixa, mais de 46 mil palestinos foram mortos, segundo autoridades locais.

Do chão, é um horror inimaginável, disse Ibrahim al-Kharabishi, um advogado que se recusou a sair da área. Durante as incursões israelenses, ele, sua esposa e quatro filhos se escondem em um canto de casa.

“Vemos corpos que ninguém se atreve a remover até onde a vista alcança. Ouvimos os feridos pedirem ajuda e alguns deles morrem”, disse ele. “Quem se sente corajoso o suficiente para ir em seu socorro cai ao lado deles e, então, ouvimos duas vozes pedindo ajuda em vez de uma.”

A importância histórica de Jabalia

Jabalia ocupa um lugar importante nas histórias de israelenses e palestinos. A Primeira Intifada, um levante que durou de 1987 a 1993, irrompeu de seus becos fervilhantes depois que um motorista de caminhão israelense atropelou e matou três palestinos do campo de refugiados, desencadeando décadas de raiva fervente contra a ocupação israelense da faixa.

Quando Hajj Alyan Fares nasceu em 1955, o campo começou a tomar forma. A agência da ONU para palestinos, UNRWA, construiu pequenas casas de cimento e ferro corrugado, com quartos não maiores do que três metros quadrados. Famílias inteiras se amontoavam nelas. As casas não tinham banheiros e os moradores tinham que transportar água de torneiras distantes.

Agora, deslocado para as ruínas de outro campo, Fares, 69, tem um sonho: se Israel algum dia se retirar, ele montará uma tenda sobre as ruínas de sua casa e viverá lá até que Jabalia seja reconstruída.

“O campo de Jabalia é minha cidade, é minha cidade natal. Tudo o que me pertence está em Jabalia”, disse ele, sua voz quase abafada por um drone israelense. “Eu me sentiria estranho em qualquer lugar fora de Jabalia.”

Qualquer pessoa que retornar voltará a uma paisagem devastada por incursões das forças israelenses, incluindo na operação atual, que Israel diz ter como objetivo impedir o reagrupamento do Hamas. Mais de 50 soldados israelenses foram mortos na operação no norte.

Por mais de três meses, Israel permitiu pouca entrada de alimentos. Tom Fletcher, chefe humanitário da ONU, escreveu na plataforma X que, de outubro ao final de dezembro, agências de ajuda fizeram 140 tentativas de alcançar civis sitiados, mas tiveram “quase zero acesso”.

As forças israelenses negam estar implementando o chamado “plano dos generais”, proposto pelo ex-conselheiro de segurança nacional Giora Eiland, envolvendo a despopulação do norte de Gaza à força e negando ajuda humanitária.

Um alto funcionário israelense disse, no entanto, que o norte de Gaza “nunca mais será o mesmo”. Muitos dos kibutzim israelenses alvejados pelo Hamas em seu ataque de 7 de outubro, que segundo autoridades israelenses matou 1.200 pessoas, estavam próximos ao norte da faixa.

“Você pode chamar de zona de amortecimento, pode chamar de terra agrícola, pode chamar do que quiser, mas haverá mais separação [física] entre comunidades israelenses e cidades palestinas”, disse o funcionário.

Trabalhadores humanitários dizem que não pode haver mais do que algumas milhares de pessoas restantes. Alguns se recusam obstinadamente a serem expulsos de sua terra. Outros são muito pobres ou doentes para se mover. Alguns se deslocam entre hospitais que mal funcionam, esperando que seu status protegido sob a lei internacional possa oferecer alguma segurança escassa.

Abed Abu Ghassan estava abrigado em uma escola perto do Hospital Indonésio. O dia todo ele ouvia artilharia e explosões enquanto forças israelenses destruíam casas. Em vídeos, soldados israelenses riem, tocam música e dançam enquanto demolições controladas destroem as residências.

Grupos de direitos humanos, incluindo a Anistia Internacional e especialistas da ONU, condenaram a destruição de propriedades civis por Israel, dizendo que, a menos que sirva a um propósito militar claro, os atos podem violar o direito internacional.

O Exército israelense disse que suas ações em Gaza e Jabalia eram “necessárias para implementar um plano de defesa que proporcionará segurança aprimorada no sul de Israel”.

Tel Aviv diz que suas operações em Jabalia focam a eliminação das brigadas do Hamas no norte de Gaza, que estavam “explorando sistematicamente centros civis”.

“As forças de Israel tomam precauções viáveis para minimizar danos à infraestrutura civil, à população civil e retiradas em casos relevantes”, dizia o comunicado, argumentando que suas tropas haviam encontrado bairros convertidos em “complexos de combate utilizados para emboscadas”.

Dentro de Jabalia, o terror é ampliado pela natureza industrial da destruição. Abu Ghassan disse que bairros inteiros foram arrasados: Fakhoura, Fallouja e Abu Sharif.

“Eu fiquei apesar da fome”, disse ele em meio a explosões. “Nós, do norte, adoramos este lugar, mas a situação se tornou catastrófica: fome, medo e a destruição de cada edifício.”

Dez dias após ele falar com o Financial Times, sua família disse que Abu Ghassan havia morrido: morto em sua amada Beit Lahia por um ataque aéreo israelense nas ruínas do norte de Gaza que ele se recusou a abandonar.

Fonte: Folha de São Paulo

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