“Já estamos acostumadas a começar de novo. Quando saímos do nosso país, saímos sem nada”, diz Maigualida Martínez, 56. Ela atravessou a fronteira da Venezuela para o Brasil com a irmã em 2018, participou do chamado programa de interiorização para chegar ao sul do país e, em maio, perdeu a casa durante a enchente em Porto Alegre.
Maigualida e os outros cerca de 20 Martínez que moram no bairro do Sarandi, na capital gaúcha, são alguns dos 43 mil refugiados identificados pela Acnur (agência da ONU para refugiados) no Rio Grande do Sul.
Com escritório fixo em São Paulo, a agência vai inaugurar uma sede em Porto Alegre para apoiar a recuperação das famílias afetadas pelas enchentes.
“É muito difícil. Essa pessoa já precisa se deslocar de forma forçada do seu país. Muitas delas deixaram tudo para trás. Elas começam a retomar a vida no país novo, aí vem um desastre provocado pelo clima e precisam se deslocar de forma forçada de novo”, diz Paulo Sérgio de Almeida, oficial de meios de vida e inclusão econômica da Acnur.
Além do duplo deslocamento, explica Almeida, os refugiados estão entre os grupos mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos. “É o tema da justiça climática“, diz. “As pessoas mais vulneráveis acabam não tendo condições de se estabelecer em regiões mais protegidas.”
O bairro do Sarandi fica próximo a um canal de água e é uma localidade que concentra uma grande população de baixa renda. Lá, assim como Maigualida, é onde grande parte dos refugiados venezuelanos e haitianos moram. Foi um dos primeiros locais a inundar com a cheia do lago Guaíba, e as casas ficaram debaixo d’água por mais de 40 dias.
No bairro, havia uma ocupação, e os antigos moradores vendiam terrenos irregulares a preços baixos para refugiados.
Na cidade de Lajeado, no Vale do Taquari —atingido por enchentes em setembro e novembro de 2023, além de maio de 2024—, os refugiados haitianos precisaram voltar para casas que foram alagadas durante as chuvas por causa da dificuldade para alugar moradias em localizações mais favoráveis nas imobiliárias, que exigem um fiador para assegurar o contrato.
A preocupação da Acnur, diz Almeida, é garantir que os refugiados não “fiquem para trás” durante as tragédias.
A Folha conversou com mulheres refugiadas em Porto Alegre e Lajeado, que contaram suas histórias, desde quando chegaram ao Brasil até os momentos durante e pós as enchentes.
A maioria delas recebeu os auxílios de reconstrução do governo e algumas, como as moradoras do Sarandi, o auxílio habitacional que prevê a compra de um apartamento de até R$ 200 mil.
Marisela José Guzmán Baduel, 48
Já tive que passar por bastante coisa. Quando chegamos à fronteira, eu e meus quatro filhos ficamos na rua por três meses. Meu filho mais novo, de 2 anos, estava desnutrido. Ele chegou a pesar seis quilos e eu tinha que carregá-lo com muito cuidado. Depois desse tempo que passamos na rua, passamos pela interiorização.
Cheguei em Porto Alegre em novembro [de 2023], e em janeiro [de 2024] houve vento forte e chuvas. A casa onde eu estava morando, perto do Sarandi, foi prejudicada e tive que sair. Depois que aconteceu tudo isso, meu filho de 5 anos, asmático, precisou ser internado.
E então veio o negócio da enchente. Eu não sabia nada. Não tinha televisão nem um bom telefone, então não sabia das notícias. Mas em frente à minha casa, no Sarandi, morava uma venezuelana que saiu gritando “vem a água”. Agarrei os quatro meninos, os vesti, coloquei casaco e fui para a casa de um familiar. Ficamos pouco tempo porque a água também entrou lá.
Fomos para uma igreja e lá ficamos também por pouco tempo, porque começaram a aparecer bichos. Nos levaram para outra igreja, onde ficamos por uma semana.
Eu não conseguia voltar para esse apartamento no Sarandi e não queria ir para o abrigo, porque escutei que tinha muita xenofobia contra os venezuelanos. Então fui para outra igreja.
Fiquei um tempo lá até que baixou a água. A princípio, não queria voltar para casa porque estava com medo. Procurei outros lugares altos, onde não chegou a água, mas não aceitavam crianças. Então tive que voltar.
Comecei a limpar. Perdi tudo. A única coisa que consegui salvar foi o botijão de gás.
Na Venezuela, eu trabalhava como cabeleireira e gostava muito. Quando cheguei aqui, tinha chapinha, as coisas de cabelo e, com a enchente, perdi. Fiz um curso de unha, agora estou praticando. Já tenho meu certificado e quero trabalhar com isso.
Miriam Ávila Martínez, 34
Cheguei no Brasil em 2018. Entrei por Roraima com minha irmã. Fomos as primeiras venezuelanas que entraram na Aldeia Infantil [ONG apoiada pela Acnur para abrigar refugiados no bairro do Sarandi, em Porto Alegre].
Fiquei dois meses e meio na Aldeia e consegui serviço em uma agência de eventos. Antes da enchente, minha vida era normal, boa. Consegui me estabelecer no Brasil.
Depois da pandemia, fiquei sem serviço e vim para o Sarandi para sair do aluguel. Tinha uma casa, um carro, estávamos estabelecidos. Depois da enchente, tudo deu uma volta muito enorme.
Fiquei 38 dias no abrigo, uma experiência horrorosa. Acho que era melhor morar na rua. Eles davam café às 8h, almoço às 15h e a janta à 0h. As crianças choravam de fome. Também teve muita xenofobia e briga. No Dia das Mães, a briga foi tanta que pegamos todas as coisas e fomos para a rua, porque as crianças estavam nervosas.
Meu esposo estava em Santa Catarina. Esperou as estradas abrirem para voltar para cá e alugar uma casa, para me tirar do abrigo. Quando acabou o pesadelo e saí, ele sofreu um acidente na estrada, no dia 29 de junho. Em 4 de julho, ele morreu.
No tempo que ficamos no hospital também teve xenofobia. Quase fiquei louca, acho que meu mundo virou.
Minha irmã me alugou uma casa aqui por perto porque eu estava muito longe e para meus filhos virem para a escola era complicado. Estava ganhando o auxílio estadia, mas tiraram de mim e me vi na obrigação de voltar para minha casa, que não tinha nada, só o telhado.
No terreno em que moro tem duas casas, a minha e a da minha mãe. A Defesa Civil [que fiscalizava os auxílios] assumiu que eu tinha voltado para minha casa, porque minha mãe voltou para a dela. Mas eu não tinha mais casa, ela ficou 44 dias embaixo d’água.
Tive quatro dias para fabricar alguma coisa. Fui juntando pau e pregando sozinha. Você vai lá e ela não está construída, está remendada. Está tampada com um plástico na frente para não molhar.
Isso dá medo. Cada vez que chove, que dá uma brisa, dá para sentir o tremor dela.
Roselore Charles, 30
Eu vim do Haiti para o Brasil quando estava grávida das minhas filhas, que têm quatro anos, para trabalhar em uma fábrica.
Não tem problema a enchente. Recebi R$ 2.060 para comprar geladeira, comprar sofá, lá na frente vou receber R$ 5.000. Lá no Haiti tem muito problema também. Se eu venho para o Brasil e o governo me dá dinheiro para comprar as coisas, é bom para mim.
Se eu tiver geladeira, colchão e fogão em casa, não tem problema para buscar outras coisas.
O medo é perder tudo novamente se a água subir mais uma vez, porque já comprei bastante. Às vezes minha filha está dormindo e acorda falando “água, mamãe, água”.
Durante a enchente, eu passei um tempo no abrigo e não conseguia voltar para a minha casa [à época] porque estava muito mofada e não seria bom para as crianças.
Mas não é fácil encontrar aluguel em um lugar que não tenha sido alagado, porque é muito caro. A casa que moro agora foi alagada, e a antiga moradora saiu.
Iglis Josefina Rojas Rondon, 49
Minha filha um dia falou para mim que não tinha nada o que comer, e eu tinha até um bom cargo de trabalho. Na Venezuela, eu trabalhava de bombeira. Primeiro, fiquei dez anos na polícia, depois dois anos de bombeira e vim para cá.
Estou há sete anos no Brasil. Cheguei em Pacaraima (RR) e depois vim para Porto Alegre.
Eu costurava lá na Venezuela para mim. Fiz um curso e aprendi algumas coisas. Quando cheguei aqui e não tinha como trabalhar de bombeira, falei que sabia costurar. Fui em uma entrevista e falei: “Sou costureira”. Só que nem conhecia uma máquina industrial.
Me deram uma oportunidade, aí me formei como costureira. Comecei a trabalhar só como auxiliar e, nos tempos livres, pedi para uma mulher brasileira me ensinar, e ela foi muito legal.
Quando saí do trabalho onde estava, eles me deram R$ 14 mil [de rescisão]. Investi tudo. Comprei máquinas, tecidos, fiz moldes. Eu fazia roupas e vendia dentro da própria comunidade do Sarandi.
Estava começando a vender roupas em lojas pequenas, mas perdi tudo com a enchente. Na casa [que foi alagada] ainda tem todas as coisas, todos os tecidos, os fios. Tentei recuperar alguns, mas depois que lavei, não serviram.
Resgatei as máquinas de costura e um senhor disse que pode arrumá-las por R$ 400 a peça. Elas custam R$ 1.500 porque são de cinco fios, são mais caras.
Demorei três meses para conseguir benefícios [auxílios do governo para os prejudicados pela enchente]. Depois, estava em uma reunião e apareceu o vice-governador [Gabriel Souza, MDB]. Falei para ele o meu problema e, logo depois, já tinha o dinheiro.
Agora estou trabalhando fazendo faxina diária e dando aulas de costura para outras venezuelanas [em uma parceria com a Acnur].
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.