Vanessa, lamento nunca ter escrito para te contar como adoro “O Louco de Palestra” e das vezes que ri com sua escrita sagaz. Sinto por nunca ter perguntado, nem a você nem a ninguém, por que não cruzei com essa escritora brilhante em eventos literários. Investigando agora, sempre que me ocorria a pergunta, inventava a classificação “terras distantes” no meu fichário interno. Suas contribuições para o New York Times me levaram a essa conclusão preguiçosa? Como cresci na periferia norte de São Paulo, o distante não era o Mandaqui, certamente.
Escrevo para te pedir desculpas por não ter perguntado de você, mesmo tendo sentido sua falta. O silêncio cúmplice entre os homens também se sustenta no silêncio das mulheres. Sem julgamentos sobre os silêncios do trauma, do medo, da ideia de proteção, me desculpo pelo silêncio cômodo de não ter procurado saber.
Para quem lê esta carta e não está entendendo, recomendo parar e ouvir o episódio 112 do podcast Rádio Novelo Apresenta. Nele, a jornalista Vanessa Barbara conta de abusos vividos em um casamento, há 13 anos, e da cumplicidade misógina em um grupo de amigos. Ouça, mesmo que provoque reações no corpo, mesmo que tudo tenha acontecido há muitos anos, quando o mundo era outro. Mesmo que você seja um homem e possa estar no grupo de 15 intelectuais brancos que trocava emails ofensivos a mulheres, mesmo que você não faça mais isso. Aprendi com Silvia Chiarelli, uma grande educadora, que você não precisa ser aquilo que você fez. Mas para não ser misógino, você precisa ouvir, pensar, compreender, se responsabilizar, se desculpar, reparar (não me pergunte como) e, principalmente, não repetir.
A náusea e o suor nas mãos ao ouvir e escrever indicam como a cicatriz de Vanessa Barbara é minha e é funda. E o lugar de poder que homens abusivos ocupam –mesmo aqueles muito legais– sustenta a pirâmide que joga mulheres, pessoas negras e trans para baixo. O individual é também coletivo e social. A estrutura e o comportamento –já nos ensinaram Foucault e Sueli Carneiro– conformam as relações de poder. Somos todas e todos parte dessa meleca e precisamos olhar para ela.
Se mulheres –principalmente mulheres negras– ganham salários menores, são violentadas e mortas por serem mulheres –a teia social para este resultado é complexa e envolve tanto a nós mesmas quanto aos homens que amamos. Precisamos ter coragem de olhar para os papéis que ocupamos, tanto hoje como no passado, e buscar formas de transformar aquilo que oprime e mata. Mesmo que doa, provoque vergonha ou pareça injusto no plano individual.
Importante: não há aqui nenhuma afirmação de que mulheres são boas e homens maus. Há mulheres que se beneficiam do patriarcado e alimentam a perversidade e a violência. E, felizmente, há cada vez mais homens vigilantes para observar as próprias práticas e transformá-las. Certamente há mulheres que fazem acusações falsas de violência, mas as quase 1.500 vítimas de feminicídio por ano no Brasil provam que elas não são a maioria. Os processos de escuta e apuração são importantes, é evidente, sem deslegitimar quem denuncia. Sem silenciamento.
Obrigada por contar e recontar suas cicatrizes, Vanessa. Quando você puder, topa um café?
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