Dois no trem, sempre ele.
Confesso: fiquei irritada com os moleques se beijando.
É que eram muitos beijos. Sonoros. e molhados. reiterados. ba ba dos.
Em determinados contextos, adoro beijos sonoros e molhados, não me entendam mal. Ou entendam o que quiserem.
Mas, nesse momento, eu lutava pra manter os olhos fixos no ebook, lendo a mesma linha 184809018 vezes, numa enervação crescente, enquanto meus ouvidos eram hipnotizados pela profusa e incansável sinfonia de
smuack hihihi uiuiu línguas e cisqui cisqui de sussurros úmidos
como nuvens fofas grávidas de chuva de desenho da disney.
Meu coração de pedra tava já virando o grinch com a adição do calô, o vagão lotado, suor demais, oxigênio de menos e o psicótico scroll de instagram de alguém ao meu lado alternando:
* musiquinha tendência
* influencer penteando o cabelo
* receita de tortilla
* cara puxando ferro e fazendo uurooaoorrrrgh (estamos sexuays hoje)
* mais musiquinha enervante
{enquanto isso, eu me agarrando desesperada ao
mesmo parágrafo
mesmo parágrafo
MESMO FCKING PARÁGRAFO
do livro
com medo de gritar e arruinar a minha vida por causa de uns beijos molhados. Viriam os seguranças, os olhares em choque, o desprezo da tribo. “Mas eles estavam SE BEIJANDO DEMAIS!”, eu diria, patética. Seria presa, minha psique problemática analisada. E ganharia as manchetes de um tabloide de bairro como a única anacrônica das galáxias que ainda considera uma c**#**# de falta de respeito num usar fone ouvido na POHA DO TRANSPORTE P…}
Uma amiga psicóloga disse que isso é sinal de hipersensibilidade emocional. Eu quero acreditar que sou uma boa pessôua.
Cinco minutos ou cinco mil eras do gelo depois, vencida e escutando ondas binaurais no último volume, levanto os olhos do livro — a cena molhada tinha mudado.
O menino, alto e magro, tinha agora a cabeça reclinada pra trás, tampando uma das narinas com o dedão. O kkkk da menina tinha sido substituído por um olhar de consternação. Ela rebuscava na sacola de compras, na bolsa de couro preta. “Não encontrei”, dizia.
O cara ao meu lado, cabelo rasta, esparramado no assento, também observava a cena. Distraidamente ou não, levou a mão ao bolso e produziu um lencinho de papel todo amarrotado, que ficou amassando entre os dedos.
Eu quebrei o silêncio (silêncio, amiga?).
— Quieres un pañuelo?
A expressão de ambos se iluminou. “Tienes??”
Dei meus lencinhos de papel, agradeceram muito.
Sentindo meu coração purificado, arrependida de ter querido matá-los cinco minutos antes, tive ímpetos de fazer amizade. E contar que o mesmo aconteceu comigo, quando eu fazia quimioterapia e saía pra dançar, contra indicação médica. Eu pulava e pulava e tinha que correr pro banheiro da balada pra meter papel no nariz sangrando em profusão, a cabeça rodando. Me sentindo estranha, estrangeira, livre, sentindo tudo. Fiquei com vontade de dizer ao casal: se beijem, que sejam beijos molhados, que seja um dilúvio de amô, por favor. Não parem, mesmo que alguma histérica grite chega! num vagão lotado de trem. Muak e cuidem-se muito.
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