As críticas e discussões sobre o funcionamento das Nações Unidas são bem-vindas, mas precisam ser mais pragmáticas e contar com novas medidas dos impactos de ações da instituição, segundo Gabriela Ramos, diretora-adjunta para Ciências Humanas e Sociais da Unesco.
A mexicana é candidata ao posto de diretora-geral da agência da ONU, uma das mais antigas da organização, cujo mandato amplo de promoção da paz inclui programas que vão do desenvolvimento da educação e da ciência à proteção do patrimônio histórico e da liberdade de imprensa e discussões sobre a inteligência artificial.
Em um momento em que a capacidade de ação das Nações Unidas é questionada em meio a conflitos na Ucrânia, na Faixa de Gaza e no Sudão, Ramos afirma que generalizar a atuação da organização, composta por dezenas de agências especializadas, programas e departamentos, e sugerir que ela não funciona mais seria jogar fora o bebê com a água do banho.
“É verdade que existem processos que podem ser simplificados. Mas também acredito que a conversa precise de uma visão mais refinada e de compreensão do sistema. Se você agrupa todo o sistema e diz que ele não funciona, não está captando nuances de algo que é muito complexo”, afirma ela à Folha. “Mas um dos lados bons de críticas fortes é permitir que encaremos as questões que precisam ser resolvidas.”
Parte importante das críticas vem de países cuja contribuição financeira é fundamental para o funcionamento da organização, como os Estados Unidos, que junto com a China têm promovido cortes ou atrasado suas contribuições, colocando em risco até mesmo funções administrativas da ONU.
Desde seu primeiro mandato, o presidente dos EUA, Donald Trump, e apoiadores atacam a organização e o multilateralismo, buscando acordos bilaterais em detrimento de fóruns internacionais. Ele chegou a dizer que a ONU é uma perda de tempo e dinheiro, removeu cientistas do painel climático da organização e retirou o país de organizações sob o guarda-chuva das Nações Unidas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre outras medidas.
Entre pontos que o republicano defende está o aumento de gastos de defesa dos EUA e de aliados —proposta que vai de encontro ao próprio mandato da Unesco e se reflete na redução do financiamento de organizações internacionais.
“A questão sistêmica aqui é a mudança nas prioridades dos Estados-membros. Vemos um aumento nos gastos com defesa e uma diminuição no gasto com desenvolvimento. Não se pode ir à Europa e dizer para não investirem em defesa, ou pedir ao Brasil que não se proteja. Esses são interesses nacionais que realmente não devem ser discutidos com o mundo. Mas é uma tendência muito preocupante para instituições como a Unesco, forjada para promover a paz; a perspectiva não é boa”, diz ela.
A perspectiva de reforma, que Ramos defende, incluiria a simplificação de processos, a busca de novas formas de financiamentos e uma abordagem mais eficiente para o trabalho e a medição da performance da organização. Isso, no entanto, de acordo com a diretora, é uma tarefa que cabe não apenas à ONU em si, mas às partes que a compõem.
Neste ano, a Unesco concluiu um projeto de revitalização arquitetônica da cidade de Mossul, no norte do Iraque, um dos focos de anos de conflito envolvendo o Estado Islâmico, que teve partes de sua história milenar destruídas pela guerra.
“No fim voltamos à questão de como medir impacto. Como se determina o valor da reconstrução de mesquitas e igrejas em Mossul, de casas tradicionais e escolas? E voltamos também à questão sobre o sistema como um todo: onde colocamos [a reconstrução] de Mossul? Incluímos neste banimento de ‘tudo está errado e eles não entregam?,’ questiona Ramos. O projeto arrecadou US$ 115 milhões de países como os Emirados Árabes Unidos e União Europeia, entre outros.
A área de Ciências Humanas e Sociais da Unesco, que a mexicana dirige, também é responsável pelas discussões acerca do desenvolvimento ético da inteligência artificial. Em 2021, as primeiras recomendações da organização foram adotadas e, em 2024, divulgou-se a primeira resolução global sobre o tema.
Para Ramos, é preciso fugir do debate que opõe tentativas de maior regulação com ideias de um desenvolvimento menos restrito da tecnologia.
“O ponto ótimo do debate é fugir dessa discussão. Grupos que detêm poder e não querem qualquer regulação colocaram isso como um trade-off total: se regula, não inova; se inova, não regula —o que é uma falácia, porque os mercados não existem em um vácuo. Escolher não regular também é uma decisão regulatória”, afirma ela.
“O ponto não é como ou não regular, mas como podemos nos beneficiar dessas tecnologias. Apenas três países produzem a grande maioria dos desenvolvimentos de IA, EUA, China e Reino Unido, e ao mesmo tempo temos um terço do mundo sem conexão à internet. O que realmente precisamos é criar os incentivos para países se apropriarem das tecnologias e as usarem em seu benefício”, diz Ramos.