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A construção do ‘herói imigrante’ como forma de pertencimento – 03/01/2024 – Latinoamérica21

Em junho de 2022, o desmoronamento de um edifício na cidade de L’Hospitalet de Llobregat, província de Barcelona, deixou uma pessoa morta, sete feridos e outras duas pessoas soterradas. Dois jovens imigrantes, de origem marroquina, que moravam em um edifício ao lado, ajudaram a salvar as duas pessoas. Os meios de comunicação espanhóis passaram a se referir a um dos imigrantes,Abdeslam Amamir, como o herói imigrante.

Em maio de 2018, o imigrante malinês Mamadou Gassam, de 22 anos, escalou um prédio em Paris para salvar uma criança que estava pendurada no quarto andar. O ato espontâneo do “Homem Aranha”, como passou a ser chamado pela mídia, mobilizou a opinião pública francesa. Após o episódio, Mamadou, imigrante que não estava regularizado no país, recebeu a cidadania francesa, concedida em setembro de 2018 pelo presidente Emmanuel Macron, além de ter conseguido um emprego no Corpo de Bombeiros da França.

Em 23 de novembro de 2023,o brasileiro Caio Benício, de 43 anos, que teve um bar na cidade de Niterói e trabalha como entregador de aplicativo em Dublin (Irlanda), usou o próprio capacete contra um homem que cometia um ataque com faca contra uma escola na capital irlandesa, salvando uma criança de cinco anos e uma professora. A tragédia deixou cinco feridos, entre os quais três crianças. O episódio impulsionou a iniciativa de realização de uma vaquinha online promovida por irlandeses que arrecadou o equivalente a R$ 2 milhões a serem entregues ao imigrante brasileiro. Caio Benício foi recebido pelo primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, e homenageado com uma medalha pelo ato de coragem. Em entrevista concedida à mídia, Caio Benício afirmou que não se considerava herói e que destinaria o dinheiro da vaquinha online para custeio do tratamento da menina salva por ele.

Em 2015, a campanha #MigrantHeroes, lançada pela Organização Internacional para Migrações, convidava pessoas de todo mundo a identificar e contar a jornada de indivíduos que se arriscaram para tentar a vida em outro país, a fim de destacar as contribuições dos imigrantes para a sociedade. A campanha, que visava enfrentar o aumento da xenofobia e as imagens negativas sobre a imigração, reforçava também o mito do herói imigrante que se tornou recorrente na cobertura da mídia sobre os chamados atos de coragem de grande repercussão envolvendo estrangeiros em diferentes países.

Diferentes heróis

No Brasil, o mito do herói imigrante focaliza as migrações europeias do passado, especialmente a de italianos e alemães no sul do Brasil no fim do século 19 e início do 20. Esse imigrante é lembrado como o “desvalido que, com o suor de seu trabalho, faz fortuna no Brasil”, segundo observa ahistoriadora Carla Menegat, promovendo o apagamento dos processos de cooperação e experiências anteriores destes imigrantes, que muitas vezes já chegavam ao Brasil contando com redes de apoio e repetiam as práticas de seus países de origem.

O mito, segundo a historiadora, sugere ainda que uns sujeitos seriam mais dignos de sucesso do que outros, o que seria o caso, por exemplo, dos negros que foram escravizados ou grupos migratórios não europeus que se estabeleceram no Brasil.

Visibilidade e pertencimento

Pesquisadores e ativistas problematizam o mito do herói imigrante. Há quem veja uma visibilidade positiva em divulgar atos de coragem ou superação, o que romperia estigmas e estereótipos ligados às migrações. Essa visibilidade ajudaria, também, a tirar do imigrante da condição de vulnerável ou vítima que geralmente ocupa no imaginário social. Mas essa visibilidade traz um outro lado que seria a individualização do social necessário ao funcionamento e reprodução do sistema capitalista.

A mobilização de afetos e emoções impulsionados pelo capitalismo neoliberal e pelo regime de visibilidade imposto pelas plataformas digitais aprofundam esses processos de subjetivação baseados cada vez mais na “gestão de si” (da saúde, do trabalho, do lazer etc.). Com isso, os imigrantes também se veem obrigados a tornar públicas as suas experiências a fim de negociar sentidos de pertencimento à sociedade de destino.

De acordo com Sofia Zanforlin e Julia Lyra, essas negociações são pautadas pelo desempenho e pela performance, “em que a história pessoal pode se configurar como um caminho para mobilizar afetos, conquistar atenção nas redes sociais e moldar seu pertencimento no país, pela via do bom trabalhador, do empreendedor, aquele que não pesa ao Estado”.

“Suas palavras me fizeram sentir que pertenço a essa sociedade, e já não me sinto mais invisível”, escreveu o brasileiro Caio Benício em carta aberta de agradecimento à sociedade irlandesa. Uma invisibilidade que foi interrompida pelo reconhecimento público que o ato heroico ganhou nas mídias. O ato do imigrante herói teria colaborado ainda, segundo as mídias, para enfraquecer uma série de manifestações xenófobas que, após o episódio, ocorreram nas ruas de Dublin contra a presença de estrangeiros na Irlanda.

A deterioração do coletivo como lugar de mobilização por direitos dos imigrantes e do Estado como ator na formulação e gestão das políticas migratórias tem contribuído para reforçar a figura do herói imigrante como aquele capaz de, individualmente, enfrentar as adversidades e superar as dificuldades estruturais impostas pelo capitalismo. Caberia perguntar quais as repercussões da consolidação das narrativas sobre o herói imigrante na dimensão coletiva das lutas migratórias que se têm materializado em experiências de solidariedade, de produção de brechas, assim como em esforços por mudanças mais amplas na cidadania e direitos dos migrantes.


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Fonte: Folha de São Paulo

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