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Conheça histórias de algumas das vítimas da guerra em Gaza – 16/03/2024 – Mundo

Eles serviam capuccinos, consertavam automóveis e estrelavam peças teatrais. Criavam filhos e zelavam pelos pais idosos. Cuidavam de machucados, faziam pizza e colocavam açúcar demais no chá. Amavam viver na Faixa de Gaza ou queriam deixá-la.

Eles representam uma fração das mais de 30 mil pessoas que as autoridades locais, ligadas ao grupo terrorista Hamas, dizem ter sido mortas no território palestino nesses seis meses de guerra. Suas histórias oferecem um vislumbre da quantidade de perdas humanas geradas pelo conflito –1 em cada 73 pessoas dos 2,2 milhões de habitantes de Gaza

Mais de dois terços desse total de óbitos é de mulheres e crianças, diz o Hamas. Muitas delas morreram junto a suas famílias após bombardeios israelenses. Milhares eram terroristas, segundo Israel, cuja incursão tem como objetivo final eliminar o grupo que liderou os ataques de 7 de outubro ao mesmo tempo em que, diz, busca limitar as baixas civis.

O Hamas, que controlava Gaza, coordenava uma organização militar secreta —a identidade de seus membros era incerta até mesmo para outros residentes do território. Alguns moradores da faixa apoiavam a facção e outros se opunham, mas todos tinham que conviver com ela. Além disso, após décadas de conflito com Israel, o ódio ao Estado judeu era generalizado, e muitos gazenses aplaudiam quando terroristas atacavam o país.

Conheça abaixo alguns dos indivíduos mortos durante o conflito, seja por meio de descrições de amigos e parentes ou de informações sobre eles que constam em postagens nas mídias sociais e em reportagens.


Uma das principais características de Gaza é que sua população é predominantemente jovem —quase metade a população tem menos de 18 anos de acordo com o Unicef, fundo para a infância da ONU. As autoridades de saúde do território afirmam que mais de 13 mil crianças morreram na guerra.

Farah Alkhatib, 12

O nome dela e o de sua irmã gêmea, Marah, rimavam. Ela adorava usar acessórios coloridos e gostava da atenção que ela e a irmã recebiam dos vizinhos. Foi morta em um ataque ao prédio em que sua família vivia. Marah sobreviveu, assim como seu pai e sua mãe, que deram à luz a uma terceira filha algumas semanas depois. Eles a chamaram de Farah.

Siwar, 3, e Selena al-Raiss, 21 meses

A mais velha adorava chocolate Kinder, batatas Pringles e suco de morango. A mais nova adorava brincar com um jipe de plástico em formato de pato.

Lubna Elian, 14

Ganhou um violino do pai e adorava o instrumento, que estava aprendendo a tocar em um conservatório palestino. Sonhava virar uma estrela.

Yousef Abu Moussa, 7

Era próximo do pai e acompanhava sua mãe na academia onde ela trabalhava como personal trainer. Ela o chamava de “medalha” porque ele sempre se pendurava no pescoço dos pais. Queria ser médico como o pai.

Nada Abdulhadi, 10

Aluna exemplar, gostava de desenhar paisagens naturais, andar de patins e pular em trampolins. Durante a guerra, fingia dar aulas para seus irmãos e primos para distraí-los. Morreu em um ataque que destruiu a casa de sua família. Sua irmã, Leen, 8, morreu quatro dias depois, presa nos escombros.

Youmna Shaqalih, 4 meses

Era o centro das atenções. Sua mãe, Maram, adorava vesti-la para tirar fotos. Ela foi morta em outubro. Sua mãe foi morta em um ataque separado 11 dias depois.


O cerco imposto ao território desde que o Hamas assumiu o seu controle, em 2007, mudou completamente o cotidiano de seus habitantes. Israel e Egito limitavam a entrada e saída do território e dificultavam, quando não impossibilitavam, a saída dos residentes da faixa. De lá para cá, a região também foi palco de diversos conflitos com os israelenses.

Faida Al-Krunz, 60

Criou cinco filhos –quatro homens e uma mulher– que lhe deram 15 netos. Estava pronta para sair de Gaza pela primeira vez, com o marido: seu destino era a Turquia, onde encontraria dois de seus filhos adultos e suas respectivas famílias. Incluiu nas malas itens tradicionais da culinária palestina: azeite, za’atar, verduras locais usadas para fazer ensopados. Mas a guerra começou três dias antes da viagem, e ela nunca saiu de lá.

Saud Al-Krunz, 61

Seus pais chegaram a Gaza depois de serem expulsos de um dos antigos territórios palestinos que viraram Israel em 1948. Nunca terminou o ensino médio, mas trabalhou para sustentar os 12 irmãos. A experiência lhe deu uma fé inabalável na educação, e buscou garantir a escolarização de seus cinco filhos para garantir que tivessem uma vida melhor. À medida que envelheceu, passou a mediar conflitos familiares, muitas vezes favorecendo as esposas dos filhos em detrimento da própria prole. Morreu em outubro ao lado da esposa, Faida, e nove de seus filhos e netos.

Ahmed Abu Shaeera, 39

Mecânico, adorava consertar coisas, e chegou inclusive a automatizar o portão da casa da família. Só saiu de Gaza uma vez, para a Copa do Mundo de 2022 no Qatar, onde seu irmão morava. Quando chegou ao aeroporto, não sabia como escanear o passaporte —era sua primeira vez pegando um avião. “Tudo era novo para ele”, afirmou seu irmão.

Youssef Salama, 69

Religioso, pregou na mesquita al-Aqsa, em Jerusalém, um dos locais mais sagrados do islamismo. “A Palestina não tem valor sem Jerusalém, que é sua pérola, e Jerusalém não tem valor sem Al-Aqsa”, disse uma vez. Também atuou como ministro para Assuntos Religiosos da Autoridade Nacional Palestina.

Hedaya Hamad, 43

Dedicou-se à saúde mental —algo raro, mas muito necessário em Gaza— no Crescente Vermelho (como a Cruz Vermelha é chamada em países islâmicos) palestino. Atendeu feridos e desabrigados pelos ataques israelenses em Gaza, bem como socorristas da área médica.

Salah Abo Harbed, 23

Fascinado por vídeos de parkour, arriscava ele mesmo algumas acrobacias urbanas nas praias de Gaza. Após enfrentamentos em 2021, praticou nos escombros, saltando, aterrissando e rolando sobre os prédios derrubados por ataques aéreos israelenses. “Quando Salah fazia parkour, ele se sentia livre”, lembrou um amigo do Centro de Circo de Gaza Livre, onde o jovem ensinava artes circenses para crianças.

Jeries Sayegh, 67

Nascido em uma família de refugiados e membro de uma minoria cristã ortodoxa grega, passou por várias guerras, mas ainda acreditava que todos os seres humanos, inclusive os israelenses que ocuparam e impuseram o cerco a Gaza, foram criados à imagem de Deus. Lembrava com afeto de ter trabalhado como contador de banco em Israel décadas atrás e achava que a convivência entre os povos da Terra Santa ainda era possível. Morreu em decorrência de um problema de saúde não diagnosticado depois que os confrontos o impediram de chegar a um hospital.

Sayel Al-Hinnawi, 22

Enquanto estudante de direito, organizava reuniões de planejamento e desenhava faixas para protestos sob o slogan “Queremos Viver”, que criticava o Hamas e pedia melhores condições de vida. Mas, refletindo a relação complexa que muitos residentes de Gaza têm em relação ao grupo terrorista, elogiou “os homens da resistência” em 7 de outubro. “Oficialmente, hoje é o melhor dia da vida de toda a nossa geração.”


Muitos dos habitantes de Gaza tinham visões diferentes sobre o que a Faixa poderia ser.

Inas Al-Saqqa, 53

Rompeu tabus nos círculos sociais conservadores do território palestino como atriz, dramaturga e artista. Atuou em peças na Faixa e em outros locais e estrelou filmes, incluindo “Sara”, de 2014, sobre feminicídio. Foi professora de teatro e de artes em Gaza e no teatro Ashtar, em Jerusalém. Mudou-se para o Egito após a guerra de 2014 em Gaza, mas tinha retornado alguns meses antes da eclosão do conflito atual. Morreu em casa com três de seus cinco filhos.

Roshdi al-Sarraj, 31

Fundou uma empresa de produção audiovisual e trabalhou como cineasta e fotógrafo. Foi assistente de câmera no documentário “Human Flow”, de Ai Weiwei, em 2017, e gostava de mostrar Gaza de forma positiva, usando por exemplo drones perto da costa. Estava em uma viagem na Arábia Saudita com a esposa e a filha bebê quando a guerra começou e voltou para casa para documentar o conflito, publicando um vídeo em que chamava os terroristas de 7 de outubro de “combatentes da liberdade palestina”.

Heba Zagout, 38

Pintava o cotidiano palestino com cores vibrantes, retratando por exemplo mesquitas e igrejas lado a lado ou Jerusalém, que ela nunca pôde visitar. Tinha quatro filhos, sustentava a família como instrutora de artes e tentava montar sua primeira exposição.

Ali Al-Sharawi, 45

Por uma década e meia, ele serviu café na Mazaj, cafeteria de luxo no centro de Gaza, ajudando a cidade a reabrir rapidamente após cada conflito. “Então nos vemos de novo”, dizia ele aos clientes que retornavam. “Estamos todos vivos.”


Gaza tem cerca de seis vezes o tamanho de Manhattan, distrito da cidade de Nova York, e uma densidade populacional maior do que a de Chicago. Seja por causa de suas famílias grandes e extensas ou pela interação com seus vizinhos, os moradores criam laços estreitos entre si, muitas vezes dependendo uns dos outros.

Amneh Hanah, 38

Brincalhona, cuidava dos irmãos e da mãe, que era viúva e com quem tinha um negócio de bordados palestinos tradicionais. Havia viajado recentemente para Meca.

Belal Abu Samaan, 38

Era aficionado por exercícios físicos. Professor de educação física na Escola Internacional Americana em Gaza e técnico voluntário da Federação Palestina de Atletismo, manteve seus atletas em atividade apesar das instalações precárias, muitas vezes comprando tênis de treino para eles com seu próprio dinheiro. Chamou o 7 de Outubro de “uma manhã brilhante para os palestinos e para a queda retumbante de Israel” em uma publicação no Facebook.

Heba Jourany, 29

Era fisioterapeuta e estava no processo de obtenção de uma certificação para ensinar ioga para outras mulheres. Sonhava em visitar a Irlanda.

Farajallah Tarazi, 80

Membro da minoria cristã ortodoxa grega, estudou engenharia de aviação no Egito e trabalhou em companhias aéreas na Líbia e em Uganda antes de retornar a Gaza e gerenciar um programa de ajuda para a ONU. Morava perto do mar e nadava com frequência quando fazia calor. Abrigou-se com outros cristãos em uma igreja durante a guerra e morreu depois que confrontos o impediram de chegar a um hospital após o rompimento de sua vesícula.

Mahmoud Elian, 47

Pai de Lubna Elian, que queria ser violinista, trabalhava para a Autoridade Nacional Palestina, sediada na Cisjordânia, ajudando pessoas com doenças graves a obterem tratamentos raros fora de Gaza. Disse uma vez a um amigo: “Há algo bonito em Gaza, apesar de tudo o que acontece”.

Riyad Al-Khatib, 58

Trabalhou em fábricas e canteiros de obras em Israel antes do cerco a Gaza e falava com carinho dessa época, dizendo que desejava que a situação melhorasse para que pudesse voltar ao território israelense. Nesse meio tempo, adorava sentar-se ao sol, fumar cigarros e tomar chá com uma quantidade tão grande de açúcar que isso se tornou uma piada de família.

Abdallah Shehada, 69

Médico aposentado, realizou operações complicadas em feridos de guerra ao mesmo tempo em que dirigia o Hospital Abu Yousef Al-Najjar em Rafah. Sua esposa, também médica, morreu de câncer, e ele lidou com a solidão convidando conhecidos para grandes banquetes em sua casa.

Osama Al-Haddad, 50

Abriu sua primeira marmoraria na garagem de casa, depois expandindo os negócios para produzir bancadas, pias e escadas de mármore e de granito em uma oficina na Cidade de Gaza. Criava pombos e cabras.


Gaza tem uma peculiaridade devido ao seu sistema escolar e e seu isolamento. Ao mesmo tempo em que ela tem população escolarizada, suas taxas de pobreza e desemprego são altas. Muitos gazenses qualificados têm dificuldades para encontrar empregos adequados.

Abdulrahman Abuamara, 39

Estudou engenharia em Gaza e na Espanha antes de tentar, sem sucesso, estabelecer-se na Noruega, onde trabalhou em um restaurante italiano. De volta à Faixa, com a escassez de empregos na área de engenharia, abriu um restaurante chamado “Italiano”, que servia pizza, calzones, saladas e shawarma. O sucesso foi tão grande que, em 2021, ele se mudou para um local novo e reluzente, com dezenas de funcionários, três andares e salas para eventos privados. Foi morto ao lado dos pais e de dois irmãos em um ataque ao prédio. Sua esposa e seus dois filhos, de 3 e 6 anos, sobreviveram.

Ghadeer Mohammed Mansour, 24

Nos dois anos anteriores à guerra, obteve um diploma universitário em engenharia de software, casou-se e engravidou de seu primeiro filho. Morreu junto com o marido antes do nascimento do bebê.

Salah e Khaled Jadallah, 27

Os gêmeos não encontraram trabalho compatível com seus diplomas universitários em literatura inglesa, então começaram um negócio de importação de roupas, calçados e acessórios para revender no apartamento da família, muitas vezes entregando os pedidos eles mesmos. Treinavam na Oxygen Gym e publicavam seus treinos no Instagram.

Doaa Jadallah, 29

Irmã dos gêmeos Salah e Khaled e morta no mesmo ataque que eles, trabalhava como técnica de laboratório no Hospital Al-Awda, no norte de Gaza, e em um laboratório particular, onde seu sorriso aparecia nos anúncios para incentivar os pacientes a fazer exames. Prezava por sua independência financeira e sonhava em fazer um mestrado.

Mahmoud Nasri Salem Al-Naouq, 25

Atuou como tradutor em um grupo de direitos humanos e trabalhou em um think tank voltado para a melhoria da vida dos palestinos. Pouco antes da guerra, recebeu uma bolsa de estudos para um mestrado em relações internacionais na Austrália. Queria virar diplomata. Morreu junto com outros 20 parentes em um ataque que destruiu a casa da família.

Jannat Iyad Abu Zbeada, 21

Trabalhava com design gráfico para ajudar a sustentar a família enquanto estudava multimídia em uma universidade em Gaza. Queria lecionar lá um dia.

Rami Abu Reyaleh, 32

Formou-se em administração de empresas, mas aceitou trabalhos na construção civil —o que detestava— e ajudou sua família com um negócio de pesca na costa mediterrânea de Gaza. Adorava futebol e torcia para o Barcelona. A viagem mais longa de sua vida durou cerca de uma hora, uma ida ao casamento de um amigo em outro lugar em Gaza.

Motaz Alhelou, 31

Tentou começar uma nova vida fora de Gaza, passando períodos no Egito, na Turquia, na Bolívia e na Argentina e até mesmo cruzando o perigoso estreito de Darién, no Panamá, para chegar à fronteira entre os Estados Unidos e o México. Solicitou asilo político, dizendo às autoridades americanas que havia sido membro da ala militar do Hamas por alguns anos antes de fugir de Gaza para escapar do grupo. O asilo lhe foi negado e ele retornou a Gaza antes da guerra.

Ajudou no negócio de móveis de sua família e pensou em se casar. “Eu queria sair, juro por Deus, porque não aposto em Gaza”, escreveu no Facebook durante o conflito Israel-Hamas. “Estou vivendo uma terceira guerra nesta terra amaldiçoada.”


Ben Hubbard
, Lauren Leatherby
, Hiba Yazbek
, Abu Bakr Bashir
, Raja Abdulrahim
e Emma Bubola

Fonte: Folha de São Paulo

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