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Como ilha britânica virou palco de execuções nazistas – 03/03/2024 – Mundo

Olhe atentamente para esta pequena ilha idílica: fortificações da era vitoriana pontilham a costa varrida pelo vento. Um muro de concreto antitanque irrompe em uma praia tranquila. Uma vegetação exuberante cobre bunkers e túneis.

Esta é Alderney, onde as 2.100 pessoas que chamam a ilha de lar não trancam seus carros, as ruas são tranquilas, os pubs —há nove deles— são animados, as estradas não têm semáforos. E onde lembretes da Segunda Guerra Mundial se escondem em cada esquina.

Esta ilha independente no Canal da Mancha, a cerca de 16 quilômetros da França, está no centro de um debate sobre como lembrar as atrocidades nazistas e viver conscientemente entre locais onde delitos ocorreram —e como lidar com o fato de que o Reino Unido nunca responsabilizou ninguém por administrar um campo de concentração da polícia nazista em seu solo.

Alderney, uma dependência da Coroa britânica e parte das Ilhas do Canal, tem um presidente independente e um Parlamento de dez membros. O rei Charles 3º é seu monarca, mas Rishi Sunak não é seu primeiro-ministro.

As Ilhas do Canal foram o único território britânico ocupado pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e Alderney foi a única evacuada pelo governo britânico. Pouco depois, quando a Alemanha ocupou partes do noroeste da Europa em junho de 1940, suas tropas se mudaram para a ilha.

Os nazistas construíram quatro campos em Alderney. Helgoland e Borkum, de trabalho forçado, eram administrados pelo braço civil e militar de engenharia dos nazistas. A SS, maior encarregada pela campanha de extermínio de Adolf Hitler, assumiu o controle de outros dois, Norderney e Sylt, em 1943.

Quantas pessoas morreram em Alderney nunca ficou claro. Embora uma estimativa oficial de décadas atrás seja de cerca de 400, especialistas dizem que a cifra pode ser de milhares. Um relatório previsto para o segundo semestre pretende oferecer respostas, mas nem todos que estudam o passado de Alderney acreditam que isso acontecerá.

‘Precisamos de uma ideia clara do número’

O mais próximo de uma contagem oficial se baseia em um relatório de Theodore Pantcheff, um investigador da inteligência militar britânica que pesquisou as atrocidades da guerra logo após o seu fim. O documento afirma que ao menos 389 pessoas morreram em Alderney. Estimativas de outros historiadores variam de centenas a milhares.

Independentemente do número, a intenção dos nazistas sobre o que fazer com os prisioneiros na ilha parece clara. Heinrich Himmler, o arquiteto do Holocausto, ordenou a um comandante em Alderney que matasse seus prisioneiros se os Aliados invadissem.

Outras histórias incluem exercícios nos quais os prisioneiros tinham que marchar para dentro de túneis que eles mesmos haviam construído para ensaiar suas próprias mortes.

Lord Eric Pickles, enviado especial do Reino Unido para questões pós-Holocausto, anunciou há alguns meses que um painel de especialistas tentaria solucionar o debate, que há muito tempo atormenta a ilha.

“Pareceu-me talvez uma maneira de encerrar o assunto”, afirma ele. “Precisamos de uma ideia clara do número de prisioneiros e trabalhadores escravos que estavam em Alderney.”

Mas uma coisa é clara, acrescentou Pickles: “A operação de aniquilação pelo trabalho” dos nazistas foi praticada no local.

Alguns residentes cujas famílias estão na ilha há gerações expressaram o sentimento de que o governo britânico está invadindo seu território, dizendo-lhes o que fazer. “Houve sugestões de que estamos em negação, que não reconhecemos o que houve”, diz William Tate, presidente da ilha, em uma entrevista em seu gabinete.

Mas os habitantes da ilha estão cientes da história de Alderney, até porque é impossível ignorá-la, continua ele. “Você só precisa sair pela porta para ver que a ocupação era real.”

Embora Tate receba bem a revisão, ele reconheceu as dificuldades que ela enfrenta devido a registros incompletos e à falta de acesso aos arquivos russos, que podem conter mais informações. “Não sabemos se esta investigação será capaz de chegar a uma resposta definitiva”, afirma. “Suspeito que não.”

Falta de memória institucional

O tipo de trabalho que o painel está fazendo é frequentemente realizado por historiadores ligados a um instituto oficial, conta Robert Jan van Pelt, outro membro da equipe. Mas Alderney não tem um guardião institucional de sua história de guerra, ponderou.

Alderney realiza duas cerimônias anuais de lembrança: uma em maio, para comemorar o fim oficial da guerra, e outra em 15 de dezembro, aniversário do retorno dos habitantes após sua libertação.

O principal memorial para as vítimas fica no centro da ilha e foi erguido na década de 1960 pela família de uma residente, Sally Bohan, que passa por ele quase todos os dias. Além do memorial, diz Bohan, “não há um ponto focal na ilha”.

Os locais dos campos têm poucos, quando há, vestígios de sua história de guerra. Sylt tinha dez barracões para abrigar cerca de mil prisioneiros da Europa continental e da Rússia. “Não era grande o suficiente, e as pessoas tinham que dormir ao ar livre”, narra Colin Partridge, um residente e especialista local que também integra o painel.

Norderney também abrigou centenas de judeus que vieram da França. Apenas oito foram oficialmente registrados como tendo morrido na ilha, um número que Michael James, que cresceu em Alderney e passou anos examinando documentos, diz ser irrealisticamente baixo.

Marcus Roberts, fundador e diretor do JTrails, ou Trilha do Patrimônio Nacional Anglo-Judaico, afirma que outros documentos mostram que os nazistas poderiam estar planejando câmaras de gás na ilha. Múltiplos túneis foram construídos em Alderney, e duas latas de Zyklon B —o veneno usado pelos alemães nas câmaras de gás— foram encontradas lá, sehgundo ele.

Tanto Roberts como outros especialistas afirmam que as causas da morte dos prisioneiros em Alderney incluíam doenças e fome, além de tiroteios e espancamentos brutais por oficiais nazistas.

O número de pessoas na ilha durante a guerra é incerto. Partridge estima que havia cerca de 6.000 prisioneiros em Alderney em 1943, no auge da ocupação dos quatro campos. Também não está claro quantas pessoas foram enterradas lá.

A comissão alemã de sepulturas de guerra exumou um número desconhecido de corpos após a guerra, e, segundo James, Alderney ainda tem duas covas valas comuns.

Comandantes nazistas obrigavam os prisioneiros a marchar por quilômetros antes de trabalhar 12 horas por dia em trabalhos físicos pesados com quase nenhum alimento. Os prisioneiros foram forçados a construir fortificações que seriam parte do Muro do Atlântico, cujo objetivo era proteger o território de uma invasão aliada da ilha. As construções seguem lá, mas a invasão nunca aconteceu.

“As ilhas nunca precisaram ser defendidas”, diz Partridge. “Todas essas pessoas morreram sem propósito.”

Os residentes de Alderney desfrutam de um amor profundo pelo lugar, um anseio por um estilo de vida tranquilo e baixos impostos. Para pessoas como James, esse idílio não bloqueia a história.

“Mesmo que não fôssemos culpados pelo Holocausto, somos culpados pela diminuição e encobrimento dele”, afirma. Em Alderney, “judeus foram assassinados, e permitimos que os culpados saíssem impunes”.

Fonte: Folha de São Paulo

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