A Otan aprovou nesta quarta (25) a sua nova meta de gasto com defesa, de 5% do Produto Interno Bruto de cada um de seus 32 sócios, em uma cúpula desenhada para agradar Donald Trump, um notório cético sobre a configuração da aliança militar ocidental.
O americano retribuiu, um dia depois de colocar em dúvida seu comprometimento com o artigo 5 da carta de fundação do grupo, de 1949, que prevê a assistência mútua em caso de agressão. “Estamos com eles até o fim”, disse em Haia (Holanda), sede do evento anual.
O secretário-geral da Otan, o nativo da cidade anfitriã Mark Rutte, repetiu o ritual de subserviência da véspera, quando enviou uma elogiosa mensagem ao presidente que o americano tornou pública, dizendo que o aumento de gasto era uma vitória pessoal de Trump.
“Às vezes papai precisa usar linguagem forte”, disse, passando pano para a fala da véspera de Trump sobre a dificuldade de implementação do cessar-fogo entre Israel e Irã. “Nós basicamente temos dois países que têm lutado há tanto tempo, e tão duramente, que eles não sabem que porra estão fazendo”, disse o americano.
A declaração da reunião da Otan é uma vitória de Trump, ainda que a implementação da meta de 5% seja algo fictícia. A aliança quer o objetivo em dez anos, e fará uma revisão do andamento do processo em 2029. “Isso dará um salto quântico” nas capacidades europeias, disse Rutte, para quem “Trump merece todo o crédito” pelo avanço.
O foco, claro, é a Rússia. Desde a anexação da Crimeia em 2014, os membros do clube vem aumentando sua despesa com defesa, cuja meta de 2% do PIB era alcançada naquele por 3 de seus então 28 integrantes.
No seu primeiro mandato, Trump pressionou pelo aumento, alegando que os EUA pagavam a conta da defesa da Europa, uma verdade quando se compara o gasto militar americano (quase US$ 1 trilhão em 2024, ante US$ 442 bilhões do restante da Otan), mas impreciso pois a máquina bélica de Washington opera no mundo todo.
A realidade, com as tropas de Vladimir Putin entrando na Ucrânia em 2022, se interpôs, e hoje 23 dos agora 32 Estados da aliança já alcançam ou superam os 2% do PIB. Mas ninguém chega perto dos 5%, um gasto enorme, com a exceção da belicosa Polônia, que marcou 4,12% no ano passado.
A promessa bate, numericamente, com o número mágico que a União Europeia, espelho político da Otan, disse que iria trabalhar para gastar com defesa no bloco, US$ 860 bilhões em um prazo inespecífico de vários anos.
“A Europa vai gastar mais por causa da ameaça russa”, disse o presidente francês, Emmanuel Macron. Apenas a Espanha, a lanterninha em gasto militar do bloco, com 1,28% do PIB em 2024, se colocou contra a medida, mas não vetou a declaração.
Isso dá uma medida prática do anúncio, que foi diluído por sugestão britânica com um truque: 1,5% dos 5% seria gasto em infraestrutura correlata à defesa, ou seja, qualquer coisa de hospitais a estradas.
O francês proferiu uma rara crítica a Trump no encontro. “Nós não podemos dizer que vamos gastar mais, e aí, no coração da Otan, lançar uma guerra comercial”, disse, acerca das rusgas tarifárias do republicano. “É uma aberração e é por isso que precisamos voltar para o que deveria ser uma regra entre aliados, uma paz comercial, abaixando todas as tarifas que existem”, disse.
Os EUA gastam com defesa 3,3% do PIB, mas uma enormidade dado que os EUA são a maior economia do mundo —e, na prática, já dentro dos 3,5% previstos para coisas como armamentos e tropas, como o próprio Rutte disse nesta quarta.
Outro ponto em que a cúpula se dobrou a Trump foi a Ucrânia. Apesar de declarações de apoio a Kiev e elogios ao presidente Volodimir Zelenski, o tema da guerra ficou em segundo plano no encontro, dado que Trump rompeu com a política americana e europeia de suporte integral aos ucranianos e abriu as portas para negociar com Putin.
O americano se encontrou com o ucraniano em uma reunião de 50 minutos em Haia.
Voltando aos gastos, a medida é uma adaptação da Europa à nova realidade. A Otan, que o mesmo Macron disse estar em “morte cerebral” em 2019, se reinventou com a agressão russa a Kiev, retomando a função primordial de buscar conter Moscou.
Para isso, precisa de dinheiro: Putin já emprega 7% do PIB russo em defesa, mais que todos os países europeus juntos, e sua produção de armamentos supera a do continente. Agora, contratos e encomendas começam a abundar, para a alegria da indústria de defesa continental —e também de Trump.
Uma das medidas anunciadas na cúpula, por exemplo, foi a compra de 12 caças de quinta geração americanos F-35A pelo Reino Unido. Eles já são certificados para lançar bombas nucleares táticas na Força Aérea da Holanda, e agora Londres vai voltar a ter essa capacidade após 30 anos —os britânicos operam mísseis nucleares próprios em quatro submarinos.
Tudo isso visa, segundo os planos da Otan, um conflito direto com o Kremlin, que os estrategistas consideram inevitável até 2030. Putin diz que isso é bobagem, uma desculpa para aumentar o lucro da indústria da defesa, que viu suas ações subirem quase 50% em um ano na Europa.
Ao mesmo tempo, as ações russas e os planos de seu Ministério da Defesa incluem o mesmo prazo para ter prontidão militar e enfrentar a Otan. Os cenários são convencionais, mas são dois rivais nucleares, o que sugere que qualquer guerra pode levar ao fim ao apocalipse atômico.
Em 1962, a americana Barbara Tuchman publicou um livro seminal, “Os canhões de agosto”, no qual contava como a teia de alianças militares e desconfianças mútuas colocou em marcha, de forma inevitável, a Primeira Guerra Mundial.
Na crise dos mísseis de Cuba, no ano seguinte, o presidente John Kennedy citou a leitura da obra enquanto o mundo quase via um confronto atômico. Sessenta e três anos depois, o livro parece ter saído de moda em Washington, Bruxelas e Moscou.