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Livro sobre identitarismo enriquece no campo da produção e da rejeição de ideias – 16/11/2023 – Mundo

Os livros de ciências políticas redigidos com paixão transpiram a energia do autor para afirmar que estamos no meio de uma guerra entre maneiras opostas de enxergar o mundo —e que a sociedade que se cuide para não cair do lado errado.

É o caso de “The Identity Trap” (a armadilha da identidade, em tradução livre), do acadêmico alemão naturalizado americano Yascha Mounk. O livro saiu este ano nos Estados Unidos pela Penguin Books e não tem ainda previsão de tradução no Brasil.

O conceito de identidade explodiu no meio universitário americano e hoje se mostra dominante em parte da mídia, no Partido Democrata, em ONGs que elaboram políticas públicas e até mesmo em grandes empresas.

Um cidadão negro e homossexual, por exemplo, pertencerá simultaneamente a dois grupos que foram historicamente discriminados. Ao lado da origem étnica e da orientação sexual há uma variedade de outros grupos também historicamente sujeitos a alguma forma de opressão. Aqui entram as questões de gênero, a identidade religiosa ou a existência de deficiências físicas.

Insistir na identidade é conceber essas minorias como pequenas ilhas que exigiriam políticas prioritárias. Elas se tornariam mais importantes que a luta pela plataforma mais ampla da democracia.

Yascha Mounk não desqualifica o processo de reivindicação desses grupos. O que ele argumenta, no entanto, é que, por meio da ideologia identitária, um grupo tende a competir com outros grupos, em busca de visibilidade, espaço político ou orçamentário. A alternativa seria a de todos se juntarem para a defesa conjunta de valores universais que esses grupos, isoladamente, não levam mais a sério. Entre os identitários mais envolvidos, saiu de moda evocar direitos humanos ou liberdade de expressão.

Mas o identitarismo não emergiu por um passe de mágica. Mounk vê sua gênese na esquerda europeia, de mais de 60 anos atrás. O marxismo, como pensamento na época dominante, sofreu alguns desgastes, como a denúncia dos crimes de Stálin —e o consequente descarte do modelo soviético— ou a demora infinita de uma revolução socialista que se imaginava iminente no pós-Guerra.

Mounk sente uma afinidade pessoal com essa esquerda. Seus quatro avós, todos judeus, eram militantes comunistas na Polônia nos anos 1930. Ele próprio, já nascido em Munique em 1982 pertenceu ao Partido Social-Democrata alemão e transpira uma aversão saudável à ultradireita de Donald Trump.

Cientista político formado em Cambridge e em Harvard, Mounk aponta o filósofo francês Michel Foucault como aquele que botou o primeiro ovo no ninho da serpente. A identidade seria o desdobramento de uma noção ampla de “poder”, fonte de autoridade que é plural e difusa, contrapondo-se ao poder monolítico no modelo institucional marxista.

Foucault também rejeita as “grandes narrativas” como a do materialismo dialético. Ainda afirma não acreditar na “verdade objetiva” e nos valores universais. Ou seja, semeou um campo para que brotasse o relativismo identitário.

O cientista político também se detém no pensador palestino Edward Said, que se recusou a aderir ao conjunto de intelectuais que importava teorias das antigas metrópoles para interpretar as novas realidades, num mundo em que a descolonização chutou longe a imagem da Europa. Said relê textos literários orientais e destaca uma “visão discursiva” —ele reivindica filiação a Foucault— que escape do eurocentrismo.

Entre alguns outros autores, Mounk se detém num intelectual aberto à influência francesa nos EUA. Faz uma leitura inteligente de Derrick Bell, advogado negro, e discorda da maneira pela qual Bell desconfia das bases morais do movimento pelos direitos civis dos negros americanos.

Com isso, prossegue o autor, ele desacredita —a exemplo do que Foucault fizera com os gays e com os insanos— das bases que sustentavam o antirracismo. Descarta-se a ideia de valores universais que prevalecia na militância durante os anos 1960.

Bell e aqueles que o seguiam foram mais longe ao desacreditar que a segregação racial fosse, para os negros, o ponto central do sistema educacional público dos Estados Unidos.

O livro de Mounk é sobretudo centrado em padrões americanos para a coleta de conteúdos históricos e a compreensão das polêmicas. Mas as conclusões a que ele chega, sempre respeitoso, são muito próximas daquelas existentes no debate sobre a questão identitária no Brasil. O livro nos enriquece no campo de produção (ou rejeição) de novas ideias.

Fonte: Folha de São Paulo

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