A Coreia do Sul admitiu pela primeira vez nesta quarta-feira (26) que, na pressa de enviar crianças para lares americanos e europeus décadas atrás, suas agências de adoção cometeram práticas ilícitas generalizadas, incluindo falsificação de documentos, para torná-las mais adotáveis .
As descobertas da Comissão da Verdade e Reconciliação da Coreia do Sul, uma agência governamental segundo a qual crianças eram enviadas “como bagagem” para lucro décadas atrás, foram uma vitória duramente conquistada para os adotados sul-coreanos no exterior. Muitos retornaram ao seu país de origem nos últimos anos, fazendo campanha incansavelmente para que os sul-coreanos fossem conscientizados de um dos legados mais vergonhosos de sua história moderna.
As agências de adoção falsificaram documentos para apresentar bebês como órfãos quando eles conheciam os pais, reconheceu a comissão. Quando alguns bebês morriam antes de serem levados para o exterior, outros eram enviados em seus nomes. Os chefes de quatro agências privadas de adoção receberam o poder de se tornarem tutores legais das crianças, direcionando-as para adoção no exterior.
O relatório da comissão foi a primeira admissão oficial do governo de problemas com as práticas de adoção do país, incluindo a falta de supervisão, embora tal negligência tenha sido exposta no passado. A agência recomendou que o Estado se desculpasse por violar os direitos dos adotados sul-coreanos.
A Coreia do Sul é a fonte da maior diáspora mundial de adotados entre países, com cerca de 200 mil crianças enviadas para o exterior desde o fim da Guerra da Coreia, em 1953, principalmente para os Estados Unidos e a Europa.
Em suas décadas de miséria no pós-guerra, a Coreia do Sul promoveu, no exterior, adoções para encontrar lares para crianças órfãs, abandonadas ou com deficiências, em vez de construir um sistema de bem-estar para elas em casa. O governo deixou para as agências de adoção encontrar e enviar crianças para o exterior mediante taxas de famílias adotivas.
“Numerosas fragilidades legais e políticas surgiram”, disse Sun-young Park, presidente da comissão. “Essas violações nunca deveriam ter ocorrido.”
As descobertas têm repercussões além da Coreia do Sul, já que vários países receptores —incluindo Noruega e Dinamarca— abriram investigações sobre suas adoções internacionais. Os Estados Unidos, que receberam mais crianças da Coreia do Sul do que qualquer outro país, não o fizeram.
“Este é um momento pelo qual lutamos para alcançar: a decisão da comissão reconhece o que nós, adotados, sabemos há tanto tempo —que o engano, a fraude e os problemas dentro do processo de adoção coreano não podem permanecer ocultos”, disse Peter Moller, um adotado sul-coreano da Dinamarca que liderou uma campanha internacional para a comissão iniciar uma investigação.
A comissão identificou muitos casos em que as identidades e informações familiares de crianças foram “perdidas, falsificadas ou fabricadas”, com envio de menores para o exterior sem consentimento legal.
Moller citou o caso de uma menina identificada apenas pelo sobrenome, Chang, que nasceu em Seul em 1974. A agência de adoção sabia a identidade de sua mãe. Nos documentos que enviou para sua família adotiva na Dinamarca, porém, a agência disse que a menina veio de um orfanato.
Essa agência, o Serviço Social da Coreia, cobrou uma taxa de adoção de US$ 1.500 (R$ 8.600), bem como uma doação de US$ 400 (R$ 2.300), por criança de famílias adotivas em 1988, disse a comissão. A renda nacional per capita da Coreia do Sul naquele ano foi de US$ 4.571 (R$ 26,2 mil). Alguns desses fundos foram usados para garantir mais crianças, transformando as adoções internacionais em “uma indústria com fins lucrativos”, disse a comissão.
A exportação de bebês da Coreia do Sul atingiu o pico na década de 1980, com até 8.837 crianças enviadas em 1985. As crianças foram “enviadas para o exterior como bagagem”, disse a comissão, apresentando uma foto que mostrava fileiras de bebês e crianças pequenas amarradas em assentos de avião.
“Embora isso não seja novidade para nós, adotados, é uma vitória significativa no sentido de que estamos finalmente recebendo o reconhecimento do que aconteceu conosco ao longo dos anos”, disse Anja Pedersen, que foi enviada à Dinamarca em 1976 sob o nome de outra menina, que morreu enquanto esperava pela adoção.
A comissão não tem o poder de processar nenhuma das agências de adoção, mas o governo é obrigado por lei a seguir suas recomendações. As agências não responderam à reportagem.
Desde que a comissão iniciou sua investigação, no fim de 2022, 367 adotados no exterior pediram que ela investigasse seus casos, a maioria deles da Dinamarca. Nesta quarta-feira (26), a comissão reconheceu 56 deles como vítimas de violações de direitos humanos. Os outros casos continuam sob investigação.
Mia Lee Sorensen, uma adotada sul-coreana que foi enviada à Dinamarca em 1987, disse que as descobertas da comissão forneceram a validação que ela estava buscando. Quando encontrou seus pais biológicos na Coreia do Sul em 2022, eles não conseguiam acreditar que ela estivesse viva. Eles disseram a ela que sua mãe havia desmaiado durante o parto e que, quando acordou, a clínica lhe disse que o bebê havia morrido.
Aqueles cujos casos não foram reconhecidos entre as vítimas na quarta-feira expressaram esperança de que a comissão seja estendida para realizar mais investigações. Mary Bowers, que foi adotada por uma família no Colorado (EUA) em 1982, ainda espera por respostas para muitas inconsistências em seus papéis de adoção. “Este é apenas o começo”, disse Bowers.