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Como a China usa ‘flagging in’ para controlar pesca global – 07/08/2024 – Mundo

Esta reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos de Washington. A apuração e a escrita contam com contribuições Maya Martin, Jake Conley, Joe Galvin, Susan Ryan, Austin Brush, Teresa Tomassoni e Bellingcat.

Em 14 de março de 2016, a Guarda Costeira da Argentina detectou um navio da China pescando ilegalmente em suas águas. Quando a embarcação, chamada Lu Yan Yuan Yu 10, tentou colidir com o barco da Guarda Costeira, os argentinos abriram fogo contra ela, que logo afundou.

O Lu Yan Yuan Yu 10 foi um dos 11 navios chineses de pesca de lula que a Marinha argentina perseguiu por suspeita de pesca ilegal desde 2010, de acordo com o governo.

Em 2017, no entanto, o Conselho de Pesca da Argentina anunciou que concederia licenças de pesca a dois navios da mesma proprietária da embarcação perseguida pela Marinha argentina no ano anterior, uma operadora chinesa. Essas embarcações navegariam sob a bandeira argentina por meio de uma empresa local de fachada.

A decisão parecia violar os regulamentos argentinos, que não apenas proíbem navios de propriedade estrangeira de hastear a bandeira argentina e pescar em suas águas, mas também a concessão de licenças a operadores com registros de pesca ilegal.

Mas essa contradição é cada vez mais comum em todo o mundo.

Nas últimas três décadas, a China assumiu a liderança na pesca global ao dominar o alto-mar, mantendo mais de 6.000 navios em águas distantes. No caso de zonas de pesca de outros países, os navios chineses geralmente ficavam “do lado de fora”, isto é, em águas internacionais ao longo das fronteiras marítimas, fazendo incursões ocasionais aos mares domésticos.

Mais recentemente, Pequim tem adotado uma abordagem menos agressiva, pagando para que seus navios possam navegar com bandeiras de países de América do Sul, África e Pacífico e, desse modo, pescar nas suas águas domésticas sem o risco de conflitos políticos, publicidade ruim ou navios afundados.

A prática, conhecida como “flagging in” (embandeiramento, em português), consiste em contornar as proibições impostas a navios de propriedade estrangeira por meio de parcerias com habitantes locais, dando a eles participação majoritária nos negócios.

Desse modo, as empresas chinesas podem registrar seus navios sob a bandeira de outro país e obter permissão para pescar nas suas águas territoriais. Às vezes, essas empresas até vendem ou alugam suas embarcações para moradores locais, mas mantêm o controle no que se refere a decisões estratégicas e lucros.

Empresas chinesas hoje controlam quase 250 embarcações que navegam sob bandeiras domésticas nas águas de países como Micronésia, Quênia, Gana, Senegal, Marrocos e até mesmo o Irã.

Muitas dessas empresas já foram acusadas de uma variedade de crimes relacionados à pesca. Registros comerciais mostram que o que é capturado nessas embarcações pode acabar sendo exportado para países como Estados Unidos, Canadá, Itália e Espanha.

A maioria dos governos exige que os navios que navegam por suas águas territoriais sejam de propriedade local. O objetivo é manter os lucros dentro do país e facilitar a aplicação das regulamentações de pesca.

A prática de “flagging in” enfraquece esses objetivos. Além da soberania e das preocupações econômicas, a segurança alimentar e os meios de subsistência locais também são prejudicados pela exportação da pesca, fonte de proteína em geral mais acessível.

“As frotas chinesas estão trabalhando longe do litoral chinês”, alertou um relatório de 2022 do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA, “e o crescimento de sua pesca ameaça agravar o esgotamento, já em nível alarmante, dos reservatórios globais de peixe”.

A prática de “flagging in” não é exclusiva da frota chinesa. Empresas de pesca americanas e islandesas já fizeram isso. Mas, à medida que a China vem expandindo seu controle sobre a pesca global, as nações ocidentais têm aproveitado a oportunidade para chamar a atenção internacional para os seus delitos.

Mesmo um país que desrespeita regularmente as normas e infringe a lei também pode ser vítima de desinformação. Quando mencionada na imprensa, Pequim normalmente descarta as críticas, rebatendo, não sem razão, que elas têm “motivação política” e acusando seus detratores de serem hipócritas.

Por outro lado, a violação de leis e normas internacionais de pesca pela China é amplamente documentada. O país já foi acusado de intimidar outros navios, invadir o território marítimo de outros países e cometer abusos contra seus tripulantes.

Nos últimos seis anos, mais de 50 navios com bandeira de uma dúzia de países diferentes, mas controlados por empresas chinesas, envolveram-se em crimes como pesca ilegal e transbordos não autorizados de acordo com uma investigação do Outlaw Ocean Project.

O tamanho, a ubiquidade e o histórico de má conduta de Pequim levantam preocupações. Empresas chinesas operam barcos que navegam com bandeiras nacionais de pelo menos nove países da África.

No Oceano Pacífico, uma inspeção feita pela polícia local e pela Guarda Costeira dos EUA em 2024 descobriu que seis navios chineses que pescavam nas águas de Vanuatu usando bandeira estrangeira tinham violado uma regulamentação que exigia o registro da quantidade de peixes capturados.

O controle da China sobre os recursos locais não se limita às águas. No caso da Argentina, Pequim forneceu bilhões de dólares em swaps cambiais, isto é, transações em que as partes utilizam moedas diferentes. A prática representou uma tábua de salvação diante da inflação estratosférica no país e a hesitação cada vez maior de investidores e credores internacionais.

Pequim também fez ou prometeu investimentos bilionários no sistema ferroviário, nas barragens hidrelétricas, nas minas de lítio e nas usinas de energia eólica e solar argentinas.

Na visão do regime chinês, esse dinheiro compra o tipo de influência política que sela o destino de uma tripulação como a do Lu Yan Yuan Yu 10.

Quando o navio afundou, a maioria das pessoas a bordo foi resgatada por outro navio de pesca chinês e conseguiu retornar à China. Mas quatro delas, incluindo o capitão, foram levados para a costa, colocados em prisão domiciliar e acusados de uma série de crimes por um juiz local que disse que os oficiais colocaram em risco sua própria tripulação e os oficiais da Guarda Costeira que os perseguiam.

O Ministério das Relações Exteriores da China logo reagiu contra a prisão. Na época, a chanceler de Buenos Aires disse a jornalistas que as acusações geraram “grande preocupação” em Pequim. Ela explicou que havia garantido aos chineses que a Argentina seguiria leis locais e internacionais. Várias semanas depois, o Judiciário argentino liberou a tripulação sem nenhuma penalidade.

No mês seguinte, a chanceler argentina se encontrou com seu homólogo chinês, Wang Yi, em Pequim. Após a reunião, Wang saudou a “viagem de cooperação” entre os países e prometeu investimento adicional à Argentina.

A presença cada vez mais ostensiva de Pequim em outros países alimenta preocupações sobre soberania pelo mundo. “A China está monopolizando os mercados ao tomar o lugar de empresas locais ou comprá-las”, disse Alfonso Miranda Eyzaguirre, ex-ministro de Produção do Peru.

Pablo Isasa, capitão de um barco de pesca argentino, acrescentou: “O inimigo está dentro e fora”.

Fonte: Folha de São Paulo

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